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A pedra

Caída da Serra do Rola Moça ao pó de onde veio

Publicado

Autor/Imagem:
Guilherme Martins - Foto Reprodução/Freepik

Ninguém sabe ao certo o dia ou mês, se chovia ou se fazia sol, se o calor era insuportável ou se o frio gelado batia sob sua superfície, mas é certo que, em algum momento particular, daquela enorme parede rochosa que se erguia próxima às margens do córrego, caiu-lhe uma parte. Uma pedra.

Pequena para alguns, grande para outros, mas o fato é que a pedra caiu. Caiu e bateu sob suas antigas partes integrantes. Desprendeu-se como quem busca vida autônoma, no ímpeto de alçar voo próprio. A pedra e sua antiga morada, seu ex-corpo. Bateu contra a parede como se quisesse negar sua antiga trajetória, como que quisesse apagar tudo aquilo de que um dia fez parte.

Talvez a pedra não entendesse a impossibilidade de começar uma vida nova, já que sua composição apontava implacavelmente seu passado. Mas ela se desprendeu, como se brotasse da rocha em seu esplendor próprio.

Rolou parede abaixo e chocou-se violentamente contra o chão, esmagando pequenas plantas e duas ou três formigas que levavam pedaços de folhas ao formigueiro. Atingida, a linha de formigas se desfez numa grande correria. Algumas pararam o trabalho para tentar remanejar o caminho, outras apenas fugiram, sem saber ao certo para onde ir. Nenhuma formiga foi ao encontro de suas amigas esmagadas. Ou talvez tenham ido. Mas a pedra já fazia história.

Estabeleceu-se no pequeno sulco que cavou com suas próprias forças ao cair, e por lá ficou. Foram dias, semanas, meses em sua nova morada, ao pé de seu antigo corpo que tão ferozmente havia renegado. Ao contrário do que parecia desejar, não conseguiu ir longe, e talvez isso a tivesse entristecido de início, caso a pedra conseguisse sentir algo.

Com o passar do tempo, as formigas do formigueiro próximo a desbravaram, subiram e tatearam por toda sua superfície, assim como lagartas, aranhas e outros pequenos seres da floresta. Durante algum tempo uma família de calangos aproveitava de sua face retilínea para esquentar-se nos dias de calor. Se por cima a pedra esquentava, nas suas laterais, em pequeninas cavidades próximas à terra úmida, besouros e outros insetos faziam morada sob a sombra fresca.

O tempo passou e da pedra brotaram pequenos musgos e limo. A família de calangos há muito não se banhava mais ali, pois foi devorada por pássaros. Incapaz de saber há quanto tempo já se encontrava naquele lugar, a pedra parecia esperar, ansiosa, mas pacientemente, uma nova oportunidade.

Certo dia, um temporal abateu-se sobre a região. A copa das árvores balançava com tamanha força que, de seus troncos, em tensionado movimento, emanava uma espiritual sinfonia, eventualmente acrescida de estrondos daqueles ramos muito jovens ou velhos demais para aguentar a turbulência e que se rompiam, nesse caso mesmo sem querer, separando-se de sua antiga estrutura-mãe.

E foi assim, ao sabor dos ventos (talvez fosse maio) que a pedra voltou a peregrinar e rolou. Dessa vez, contudo, não foi ela que transformou o seu redor, mas seu redor que a levou junto. Terra, plantas, água enlamaçada, e a pedra, tudo desceu em direção ao córrego, mas tiveram fins diferentes. Enquanto as plantas foram velozmente deslizando na superfície do córrego cheio, a pedra bateu na água e afundou. Não avançara tantos metros quando se prendeu junto ao que pareciam ser suas irmãs e primas, que haviam saído de casa algum tempo antes.

Dias, meses, anos, décadas? Ninguém sabia dizer, pois, apesar do barulho da tempestade, todas as demais pedras do leito do córrego permaneciam caladas, muito eventualmente fazendo algum som, quando se moviam e se chocavam contra outras.

A chuva torrencial passou, o córrego esvaziou-se e voltou à sua vazão normal, e assim a pedra não teve mais condições de movimentar-se. Ficou ali. Parte do líquen que havia crescido nela já não estava mais lá, tinha ficado pelo caminho, em pedaços de madeira contra a qual havia colidido.

Ao observador distraído, a pedra parecia relativamente igual, pois seu formato não havia mudado tanto, tirando algumas lascas que havia perdido durante os duros trajetos (apesar de breves) que havia percorrido. Mas os peixes e demais animais do córrego sabiam que ela havia se transformado em algo novo, pois agora era uma pedra aquática, e isso mudava tudo. Talvez tamanha mudança não estivesse em seus planos; afinal, ninguém nunca havia perguntado para a pedra qual era sua perspectiva para o futuro.

Agora, no fundo do córrego, a pedra encontrava-se mais agitada, frequentemente sendo levada de lá pra cá, e daqui pra lá, num constante rolar. Quando parava muito próxima às outras e, por coincidência, formava pequenas cavernas, tornava-se parte de abrigo de peixes, ou auxiliava no abrigo de cobras que devoravam os peixes.

Vez ou outra descia o córrego com tamanha velocidade que destruía madeiras podres submersas e atingia fatalmente um ou outro animal. Em outros momentos, rolava até estabelecer-se às margens do córrego, como se quisesse voltar – sem sucesso – à terra firme. Poderiam dizer que era saudade de sua antiga morada, poderiam dizer que estava arrependida por ter se soltado de seu corpo original, mas tudo isso seria irrelevante, pois a pedra não pensava nisso, já que não pensava em nada, pra início de conversa.

E nesse vaievém do córrego, fazendo-se abrigo ou devastação, à depender do momento, a pedra integrou o passar do tempo. Não se sabe se foram décadas ou séculos, pois ninguém ali estava para lhe observar o movimento. Mas ela seguiu todo o trajeto até chegar ao rio no qual o córrego desaguava.

No volumoso e esplêndido rio, imponente e caudaloso, a pedra que no córrego parecia tanto, tornou-se cada vez mais diminuta na enormidade que passou a integrar. O acachapante volume do rio, sua diversidade e grandiosidade, pareciam ter-lhe retirado o brio. E assim foi ficando de tal forma que parecia até se movimentar menos pelas águas, mesmo em tempos de torrente.

Os peixes pareciam querer-lhe retomar a vida e os sonhos de autonomia, e, próximos a ela, às vezes, depositavam suas ovas, como que lhe mostrando que a vida se renova, mas a pedra permanecia alheia a toda sorte, inerte sobre o fim que o destino parecia ter-lhe reservado.

Em um entardecer, uma grande sombra se fez sobre a pedra, passos largos agitaram seu redor remexendo o fundo do rio, e engenhosos dedos lhe tocaram pela primeira vez, segurando-a e retirando-lhe do fundo da água. Depois de tanto tempo a pedra era novamente atingida pelo vento, que lhe contornava, não mais passando em suas arestas pontiagudas, pois já havia perdido esse formado há muito tempo. Agora arredondada, com um tamanho muito menor do que no início de sua trajetória, a pedra era lisa como nunca havia sido. Os dedos enormes esfregavam aquela superfície, sentindo toda a leve textura que tinha adquirido pelo movimento da água.

Agora sim a pedra, escolhida entre tantas outras, parecia estar cumprindo seu destino, estava finalmente exercendo o papel que lhe havia sido reservado. Todo seu caminho parecia não ter sido em vão, todo o esforço que lhe causou tantas perdas, a ponto de se ovalar, fazia sentido. A mão segurava a pedra com força, com a vontade de quem encontrara um objeto precioso que há tanto procurava. Apontada contra o sol, o calor lhe aquecia vivamente e pouco a pouco a pedra se expandia. A mão e a pedra contra o sol.

Mas aquele pequeno pedaço inerte de rocha não entendia os desígnios do destino, e mal havia se aquecido contra o sol quando foi arremessada por aquela enorme mão de criança. Voou por alguns segundos, planou sobre as ondas plácidas do rio que de tão calmo parecia um lago. Voava tão rápido ao lado de uma libélula que, para o inseto, parecia estar estática. A pedra e a libélula, lado a lado, naquela fração de segundos que parecia uma eternidade, livre de todas as leis da física e da lógica, logo antes de novamente atingir a água, afundando na realidade de sua condição de pedra, que não nada nem voa.

Infelizmente, não coube desta vez, seja aos animais ou a outros objetos sem vida, a possibilidade de serem aquilo que não podem ser. A inflexível realidade mais uma vez se impôs a despeito de qualquer desejo. Bruta, rude, insensível, a realidade apenas é. E foi assim que a pedra retornou ao seu lugar de pedra, mesmo que aquática.

Teria valido a pena separar-se da parede que integrava? Seria essa sua ventura? Afinal, qual seria seu destino enquanto pedra? Tornar-se concreto? Compor o jardim de uma casa qualquer? Virar integrante da coleção de rochas de algum geólogo? Passatempo fugaz na mão de uma criança?

Ninguém poderia lhe responder tais perguntas, inclusive porque a pedra não as fazia. A pedra, assim como a realidade, apenas era. E foi sendo pedra – aquática – que permaneceu no fundo do rio, não se sabe por quanto tempo mais. Às vezes, fragmentava-se mais um pouco, mudava de lugar, mudava de função, mas, acima de tudo, a pedra era pedra. E, com o passar do tempo, foi diminuindo, lentamente diluindo-se na correnteza, sob o sabor das correntes d’água, sobre as intempéries climáticas que atingiam algum trecho do rio no qual a pedra, por mera eventualidade, se encontrava.

E assim, dia a dia, toda vez que diminuía, imperceptivelmente, seus pequeníssimos pedaços, semelhantes a grãos de areia, iam-se espalhando pelas águas, depositando-se no leito, às margens ou sendo carregados indefinidamente até onde o destino – ou as reações físico-químicas – os levassem. E, sem que ninguém notasse, sem que nenhum ser vivo se desse conta, o perpétuo movimento do real transformou a pedra em areia, espalhada pela corrente fluvial, parte integrante do caudal da realidade, do vórtex que a tudo engole.

A pedra, finalmente, cumprira sua jornada.

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