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Visão correta

Calendário 2019 torna mulheres sujeito em vez de objeto

Publicado

Autor/Imagem:
Vanessa Friedmann

Foi um ano carregado o da Pirelli. Afinal, o atraente calendário, que fez sua fama retratando mulheres nuas e semi nuas com aura de expressão artística e exclusividade, vem se reposicionando há cerca de quatro anos como uma afirmação do fotografia socialmente consciente.

Começou em 2015, quando Annie Leibovitz foi chamada para repensar a edição 2016 do calendário e decidiu elencar uma seleção de mulheres de alto desempenho, incluindo a diretora Ava DuVernay e a filantropa Agnes Gund, retratadas quase completamente vestidas para refletir o emergir de um novo tipo de “heroína”.

A ele se seguiu um calendário com retratos de celebridades de todas as idades por Peter lindbergh, entre elas Helen Mirren, então com 71, em sua glória sem retoques, do jeito que elas são. Tim Walker fotografou o próximo, reimaginando “Alice no País das Maravilhas” com um elenco totalmente afro-americano, incluindo o stylist responsável, Edward Enninful, o primeiro afro-americano editor da Vogue inglesa.

Esta semana a resposta foi, ao menos em parte, revelada. “Não queria levar um monte de modelos para a praia e pedir para elas tirarem a parte de cima de suas roupas”, diz Albert Watson, o fotógrafo escocês de 75 anos por trás do calendário 2019.

Watson é um dos mais elogiados criadores de imagem de sua geração, tão famoso por suas capas de Vogue quanto por seus retratos de Hitchcock com um ganso de gravata borboleta e Tupak Shakur com uma arma. “Parecia antigo”, ele fala. “Estava mais interessado em contar histórias de quatro mulheres diferentes.” E faz isso usando fotografoia e linguagem de cinema.

O assunto desta vez é em torno de sonhadoras. O problema é: elas não são o tipo de sonhadoras atuais que a inclinação da Pirelli por tópicos quentes podem fazer você pensar.

Quatro mini crônicas descrevem personagens perseguindo suas paixões – não as da carne, mas as da alma. Elas incluem Misty Copeland, diretora do American Ballet Theater (ABT), como uma aspirante a dançarina que vive com seu namorado aspirante a bailarino, interpretado pelo solista do ABT Calvin Royal III, e que faz pole dance para pagar as contas.

Tem Laetitia Casta, a modelo e atriz francesa, como uma aspirante a pintora, que repousa ao lado do namorado, encarnado pelo dançarino ucraniano Sergei Polunin em um antigo estúdio em ruínas. A atriz Julia Garner, de Ozark, é uma aspirante a fotógrafa botânica. E tem Gigi Hadid como uma herdeira desmotivada ao lado do colega de terno preto encarnado pelo estilista Alexander Wang.

O calendário, que inclui múltiplas fotos para cada história e que é bem maior do que seriam as 12 páginas padrão, tem nível e valores de produção envolvidos dignos dos que foram consagrados em três livros de fotos do calendário (sendo The Calendar: 50 Years and More, da editora Taschen, o mais recente deles).

Os cenários deste ano são fantasticamente luxuriantes: um jardim em Miami com lírios maduros e vegetação verdejante; um apartamento no topo de arranha-céu, com carpete de pelúcia, e vista noturna sobre Nova York, um estúdio em tons de sépia banhado em um romantismo decadente.

Não há provocação de nudez, entretanto há alguns momentos atmosféricos de lingerie (e aparentemente Copeland foi tão convincente no seu pole dancing que, ao fim da sessão, o dono da locação perguntou se ela estaria disponível para contratação). O movimento e o torpor e o fascínio de se perder em busca da realização artística são palpáveis.

Mas este é um novo tempo e essas são histórias velhas. Há um tipo de nostalgia – cerca de 95% das roupas eram vintage, Watson disse – que sufoca a imagem e a distorce frente à urgência social que o assunto pede e que em nos últimos anos vem ajudando o calendário a se atualizar e, de certa forma, expiar a lascívia de seu passado.

Talvez seja impossível manter aquele tipo de momentum. Inquestionavelmente, a mudança arriscava parecer oportunista, como uma grande companhia pegando carona no assunto do momento apenas por marketing.

Certamente, a maneira como a Pirelli concebeu o calendário, há tantos anos atrás, significava que ela nunca controlaria totalmente o produto final. O que faz com que fotógrafos famosos, como Watson, emprestem sua credibilidade para um tipo de apresentação que não necessariamente os atrairia (um calendário de mulheres para uma empresa de pneus, sendo reducionista), é o fato de a Pirelli dar a eles as carta branca criativamente falando.

O calendário pode ser muito bem vindo, como eles em geral são, um item de colecionador. As mulheres que ele apresenta agora são mais sujeito do que objeto, o que é algum avanço. Mas ainda uma mudança sutil. E o tempo para tal sutileza está, francamente, passado.

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