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País de fantasia

Caos bate na porta desse Brasil de Jair Bolsonaro

Publicado

Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

A repentina e festejada mudança de tom no pronunciamento do presidente da República não significa que ele decidiu ficar bonzinho, pensar no seu eleitorado (e no dos outros) e trabalhar pelo controle da pandemia. A proposta não foi somente dar alguma satisfação aos 210 milhões de brasileiros, pois ele (o presidente) acha pequeno demais se dirigir ao povo de vez em quando. Pública e diariamente, a preferência é falar para a claque de apoiadores de plantão nos jardins do Palácio da Alvorada, onde, longe da imprensa canalha, não há questionamentos. Portanto, nada de anormal na falação de terça (23), considerando que o verdadeiro objetivo foi tentar dividir responsabilidades que são apenas suas. Definiria o que ouvi com uma tentativa de “ressignificação” do mandato.

Na prática, nada mudou na cabeça do Jair Bolsonaro, que sempre negou a doença, fez pouco caso da vida, nunca lamentou as mortes, avacalhou a vacina CoronaVac, que chamava de “vachina chinesa” e jamais defendeu o uso da máscara ou o recolhimento social como formas de conter o vírus. Pelo contrário. Fez continuadas piadas com quem estava enclausurado em casa, “receitou” remédios sem qualquer eficácia comprovada, desqualificou todas as recomendações da ciência e esculhambou os governadores que, demagogicamente ou não, tentavam salvar vidas propondo medidas radicais, entre elas o lockdown. Supostamente em defesa da economia e do emprego, o capitão sempre optou pelo caos. Então, não é verdadeira a afirmação de que “somos incansáveis contra o coronavírus”.

Aliada à iniciativa corajosa de alguns governadores, foi justamente essa possibilidade do fundo do poço, levantada dias atrás pelo presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a razão da rede nacional de rádio e televisão. As duas piores semanas da pandemia no Brasil obrigaram os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário a propor um pacto nacional pela vida. Pacheco chegou a afirmar que “Ou o Brasil se une, ou será o caos”. A movimentação do senador e do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal, acordou o presidente, cujo único temor é perder um protagonismo que, embora ache que tenha, as urnas não lhe garantiram. Em síntese, o texto lido na noite de terça foi cirúrgica e premeditadamente pensado para esvaziar a reunião desta quarta (24) com Pacheco, Fux e com os governadores que defendem o fechamento total. Pelo menos o encontro gerou, com um ano de atraso, a criação de um comitê anticovid.

Vale lembrar que exatamente hoje faz um ano que o presidente foi à tevê afirmar que o vírus não passava de uma “gripezinha” e que a pandemia seria breve. Mais um engano presidencial. Chegamos ao incômodo, péssimo e temido cenário da Covid-19, com 12.130.019 infectados e 298.676 óbitos e, infelizmente, seguido de recordes assombrosos a cada 24 horas. Pior ainda é ouvir o chefe do Executivo, pressionado pelo aumento de mortes e pela escassez de leitos nos hospitais, afirmar em rede nacional que o governo trabalha incansavelmente no combate ao coronavírus e que 2021 será “o ano da vacinação dos brasileiros”. Enquanto ouvia tudo isso, tentava descobrir as “medidas” do governo e a forma de a vida voltar ao normal, conforme o irreal e fantasioso discurso oficial.

Sem conclusão plausível, ameacei me jogar da tábua do vaso sanitário. Fui salvo dessa tentativa maluca de suicídio ao ser alertado pela família sobre o panelaço nos prédios vizinhos, na cidade e em todos os cantos do país. Percebi a tempo que não estava temporariamente em nação que não a minha e que o percentual de vacinados permanecia em 5%. Valha-me Deus e diga que não estou exagerando acerca das sugestões interessantes e assustadoras relativas a esse grupo denominado bolsominion, cujo prazer é acreditar e aplaudir atitudes dantescas, toscas e, por vezes, irresponsáveis do plantonista da Presidência da República. Por isso, o susto momentâneo deu lugar à sensatez ao analisar indicações sociológicas e psiquiátricas para as atitudes dessas pessoas.

Trocar de clube, de partido político ou de santo protetor é do jogo humano e aceitável até mesmo pelos mais radicais. Inconcebível e macabro é ignorar ou torcer por um vírus desconhecido, silencioso e letal simplesmente para não desagradar um líder que encena governar para uma plateia cada vez mais diminuta e que nunca espera pelo segundo ato, pois sabe que ele jamais virá. Digo isso porque, ao longo de dois anos e alguma coisa de administração, a maioria dos 210 milhões de brasileiros só ouve falar do presidente quando ele, movido por algum sentimento raivoso, decide destilar para a meia dúzia que faz ponto no Alvorada o ódio represado no fígado dilacerado de lorde suburbano.

Claro que, muito mais do que fígado, a maioria dos suburbanos tem coração que pulsa forte diante da desgraça alheia e está convicta de que, ante qualquer escolha, a vida em primeiro lugar. No país de discursos distorcidos e fora da realidade, o presidente que nega o vírus é o mesmo que convoca a população para dizer, equivocadamente, que o Brasil é o quinto em vacinação no mundo. Por isso, viramos pária pandêmico, um câncer para o planeta. Atingimos o assustador posto de nação com o maior número de mortes por períodos de 24 horas. Enquanto isso, eufemisticamente, os bolsonaristas divulgam somente o quantitativo de pessoas que, felizmente, se livraram da doença. É o mesmo que dizer que o vendedor de passagens, a moça do check-in, o checador de bagagens, o operador de Raio X e o picotador de bilhetes foram os únicos sobreviventes de um acidente aéreo com 500 mortos. Que Deus nos livre.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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