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Tiro no pé

Capitão incendeia parquinho e põe fogo no governo

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

A reforma ministerial divulgada na tarde-noite de segunda, 29, foi de sinal de força ou de fraqueza do governo, por extensão do presidente da República? Esse questionamento povoou a mente de leigos e neófitos em política e varou a madrugada no dia da reabertura dos bares e restaurantes de Brasília. A resposta é fácil, mas melhor deixa para reflexão de cada um. O que posso afirmar é que, como disse há alguns séculos Luís de Camões, “o fraco rei faz fraca sua forte gente”. Como atestar sapiência a um dirigente de nação que, com uma canetada, tira dois generais do comando das principais embarcações da frota: o Ministério da Defesa e a Secretaria de Governo. Um deles foi substituído por uma mocinha ainda na primeira comunhão, cuja espinhosa tarefa a ser cumprida é justamente manter o torpedeiro singrando em mares revoltos.

Parece bastante claro que, muito mais do que demonstrar fraqueza, o cidadão Jair Bolsonaro provou que entende tanto de governar quanto eu de pilotar avião. Com a mesma canetada, passou o leme do porta-aviões ao Centrão e abriu uma desnecessária crise com os militares, notadamente com o Alto Comando do Exército. Difícil encontrar razões para explicar o rompimento de um presidente que defende diariamente o golpismo com o que há de melhor e mais forte nas Forças Armadas. É preciso muita bala na agulha. E ele não tem. Se foi para salvar a própria pele, os generais entenderam diferente. Então, o tiro pode acabar atingindo os dois pés. A verdade é que o parquinho está em chamas justamente na semana em que o Brasil, ainda à procura de vacina, se aproxima de 320 mil mortos pela Covid-19.

No governo de salão de beleza, no qual as grandes discussões não passam de perfumarias, entregam-se os anéis, mas nunca os dedos. Para alguns, isso pode ser apenas uma questão de semântica, mas, no português claro, quero dizer – e com todas as letras – que humildade e reconhecimento de erros são questões que geram urticária no presidente da República. Avaliada como o mais duro golpe no bolsonarismo desde a saída de Abraham Weintraub do Ministério da Educação, a derrubada de Ernesto Araújo das Relações Exteriores não será engolida tão cedo pelo núcleo duro do Palácio do Planalto, começando pelo principal inquilino, que, mesmo nas cordas e sem água, não passa recibo do anunciado nocaute. O embaixador Carlos França é o novo responsável pela diplomacia brasileira.

Entregou a cabeça de Araújo na bandeja de prata dos senadores, deputados e diplomatas insatisfeitos com a conduta e, sobretudo com a vocação do ex-ministro para o trabalho. Entretanto, como já esperado, equivocadamente decidiu mostrar que não aceita ordens de terceiros. Demitiu o chanceler enganador na esteira de uma minirreforma, mas também levou para o buraco o até ontem à tarde titular da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, substituído pelo general Walter Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil. O crime do ex-titular da Defesa foi referendar tese da maioria dos generais que estão ou já estiveram no governo. Para eles não se deve permitir o uso de púlpitos militares para recados políticos. A proposta de não “misturar água (sacerdócio militar) com azeite (política partidária)” ficou ainda mais clara na carta entregue pelo general Fernando ao capitão Bolsonaro.

“Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”. Em síntese, é de bom alvitre separar o joio do trigo, antes que o fogo do parquinho alcance todo o circo do governo. Em outras palavras, não devemos confundir força com desespero. Em meio a essa confusão iniciada no Palácio do Planalto e esticada por toda Esplanada dos Ministérios, o dado mais interessante foi o anúncio de que o vice-presidente Hamilton Mourão, ao tomar a primeira dose da vacina anticovid, está imunizado contra a caneta Bic do presidente. Responsável pela articulação (?) do Executivo federal com o Congresso Nacional, outro general, Luiz Eduardo Ramos, assume a cadeira de Braga Netto e dará lugar à deputada de primeiro mandato Flávia Arruda (PL-DF), aliada de primeira hora do chefão do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), novo velho esteio do presidente.

Nessa dança de cadeiras, sobrou para André Mendonça, que deixou o Ministério da Justiça para o secretário de Segurança do DF, Anderson Torres. Mendonça retorna à Advocacia-Geral da União, em lugar do demitido José Levi, que não assinou a ação direta de inconstitucionalidade que o presidente propôs ao Supremo Tribunal Federal contra três estados que haviam implementado medidas restritivas de circulação durante o agravamento da pandemia. O ministro Marco Aurélio Mello negou o pedido. Começava ali o fogo no parquinho. O Centrão tem expertise e malícia de sobra para saber que está prestes a comandar – talvez só ajudar – um governo claudicante e que confiava justamente nos generais que defenestrou sem dó nem piedade. Obviamente, a demissão de Fernando Azevedo jamais foi cogitada sequer pelo taifeiro de um longínquo batalhão. O fato é que ela surpreendeu e desagradou generais do Alto Comando do Exército.

Muitos souberam da saída do colega de farda pela televisão, o que, na hipótese mais simplória dos quartéis, soa como decisão deveras antipática para a tropa, notadamente para o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, cuja cabeça deve ser a próxima a ser exposta no cadafalso. Apenas como lembrança, em pouco mais de uma semana Fernando Azevedo foi o segundo militar graduado a ser jogado aos leões. Antes, o general Eduardo Pazuello havia perdido o cargo de ministro da Saúde para o médico Marcelo Queiroga. Além deles, deixaram de ser importantes para o capitão reformado Jair Bolsonaro os generais Santa Rosa (Assuntos Estratégicos), Guilherme Theophilo (Segurança Pública), Juarez Cunha (Correios), Franklimberg Ribeiro (Funai), Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Rêgo Barros (porta-voz).

A partir desse fogaréu, assunto antigo voltou a ter força nos bastidores das três forças. Não hipótese de qualquer cerceamento a uma provável candidatura de Luiz Inácio. Entretanto, nas conjecturas castrenses soa como música clássica uma alternativa política a Bolsonaro e provavelmente a Lula. A ideia deixou de ser apenas sussurro entre militares da ativa e da reserva que ajudaram Bolsonaro a chegar à Presidência em 2018. Ainda que não sejam diretos, faz tempo generais de raciocínio lógico e rápido temem pelo futuro, especialmente pela divisão do país. São contra extremismos e estão cada vez mais preocupados com a incompetência e fragilidade do governante que apoiaram. Quanto ao presidente e sua ideologia de boteco, a derrubada do tabuleiro mostrou que seus eleitores viveram uma fantasia. Compraram um super-herói e receberam uma personagem de polichinelo.

A propósito, vale mais um registro: o general Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Carlos Bermudez, que não não têm mais idade para brincar de gangorra e muito menos se passarem por palhaços, também decidiram dar as costas ao parquinho. Mas isso não significa, teoricamente, que desejem ver o circo pegar fogo, por maiores que sejam as semelhanças entre o capitão e aquele imperador que fez de Roma uma imensa fogueira.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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