Curta nossa página


Honra quase perdida

Caso de amor juvenil fica gravado na memória

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

O jeito supostamente engraçado de contar histórias é uma herança de meu avô, refugiado português que, fugindo dos horrores da ditadura de Antônio de Oliveira Salazar, aportou no subúrbio do Rio de Janeiro no início do século passado. Não sei se tenho graça, mas é a forma de narrar histórias e contar estórias. Não costumo rir da desgraça alheia, mas, sem macular a imagem do abstrato protagonista, tampouco o ofício de escrevinhador, me habituei a fazer dela (a desgraça) uma bela parceria na busca de sorrisos, gargalhadas e até “obradas” imaginárias. Por isso, seja triste, bizarro e, às vezes, escatológico, não deixo de passar para meus 15, 16 ou 17 leitores qualquer fato que tenha assistido, participado ou ouvido falar. É claro que os melhores e mais indicados pelos psiquiatras, psicólogos e pais de santo com os quais já me consultei são aqueles em que sou a própria “vítima”.

Normalmente, a maior alegria da adolescência é a primeira namorada, aquela que, no meu tempo, era considerada mais séria pelo simples fato de ter a anuência de pais, irmãos, avós, tios e afins. Como tenho certeza de que ela não terá conhecimento de minha confissão, meu relacionamento inaugural só não foi pior do que o contato inicial com a matemática e suas derivações, incluindo a terrivelmente demoníaca trigonometria. Era algo tão bestial como a ditadura dos anos 60, 70 e início dos 80, com a qual o mito e sua patriotada de araque flertam noite e dia. Na verdade, flertavam, porque, após a cagada de 8 de janeiro, a maioria está literalmente defecando nas bocas de lobo da Papuda ou nas penitenciárias para as quais foram deportados. É da vida. Cada um colhe abundantemente o que estrogonoficamente plantou.

Jovem na alma, na consciência e nos rompantes, não merecia desfecho tão trágico na descoberta do amor. Como os opostos se atraem, comecei a paquerar uma “burguesinha” do bairro vizinho, cujo pai era um próspero plantador de mandioca, nabo, rabanete, cenoura e pepino, todos produtos de alta periculosidade para pessoas de sexualidade avançada. Não era o meu caso. Pois bem, até o fato sucedido, não havia osculado nada além do rosto da moça. Tinha má fama no bairro e adjacências, mas, para meu desespero de rapaz probo, varonil, erecto e sapiente (não saliente), decidi que aquela era minha chance de mostrar ao mundo um princípio regenerativo que somente alcancei décadas após com dona Kátia, a patroa e comandante há décadas do consolidado cuore. Juro que tentei, mas, à época, lá no início dos anos 70, o máximo que consegui foi provar ao povo que nem tudo que pica arde.

Depois de algumas semanas de contatos de zero grau com a tal burguesa, acabei convocado a estreitar os laços com os futuros sogros e demais familiares da princesa consorte. De cara, percebi que o azar foi meu. Dia marcado, parti para os conhecimentos gerais. Na maior fatiota, portando uma camisa volta ao mundo da Ducal Roupas e calçado com um recém-adquirido Kichute cano curto, criei coragem e adentrei o recinto da residência que acabou sendo meu primeiro calvário. A ainda namorada havia ficado no banco de madeira fincado na porteira da casa, distante cerca de 100 metros da sede. Certo de que estava certo, sentei no sumiê mais curto. No meio da sala, pai e mãe. Espalhados pelos cantos, quatro irmãos, padrinhos, tios, primos e agregados da moça. Por baixo, umas 40 pessoas. Eu na berlinda. De repente, o ex-sogro se levanta e, quase gritando, pergunta o que eu fazia.

Minhas intenções não interessavam. Todo posudo, respondi que era estudante e que estava trabalhando como office boy no Centro da cidade. A segunda pergunta foi definitiva: Quanto você ganha? Me achando o dono do pedaço, disse que, na moeda de então, recebia 326,26 cruzeiros, valores inferiores a um salário mínimo. O véio avermelhou o rosto, encolheu o saco, esticou o dedo e, na minha cara, bradou: “O que você pensa da vida? Ganha menos de um salário mínimo e quer namorar minha filha. Gasto com ela um salário mensal só de papel higiênico. Papel higiênico, meu caro. Papel higiênico, está ouvindo?” Arrasado, humilhado e arrependido, sequer agradeci a acolhida. Saí correndo dali, imaginando uma resposta rápida para a ex-namorada. Chegando à porteira, ela correu ao meu encontro, querendo saber do resultado. Sei que fui injusto e, talvez, grosseiro, mas o que disse me fez lavar a honra quase perdida: “Cagona”. Nunca soube se o papel higiênico era Neve, Personal ou Stylus. Pelo preço, acho que era folha dupla.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência Estadão, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.