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Normal do amanhã

Covid indicará novo rumo do capitalismo

Publicado

Autor/Imagem:
Sérgio Mansilha

Um colega perguntou-me recentemente se algum dia iríamos “voltar ao normal”. É uma pergunta que todos nós nos perguntamos. De repente, coisas que antes considerávamos totalmente certas, como, jantar em um restaurante movimentado, poder dar um abraço em um amigo parecem luxos distantes.

Eu, pelo menos, espero ser capaz de fazer essas duas coisas em breve. Mas, por outro lado, espero que nunca, jamais voltemos.

Oito meses atrás, era “normal” que o 1% mais rico possuísse mais de 40% da riqueza no Brasil e que os 5% mais ricos levassem para casa quase um terço de toda a renda, enquanto 40% dos brasileiros precisariam tomar emprestado, vender algo ou não conseguir pagar uma despesa de R$200,00.

Oito meses atrás, era “normal” que quase um quarto da força de trabalho civil no Brasil não pudesse tirar um dia de licença médica remunerada e que nos sentíssemos confortáveis ​​tolerando a opressão sistêmica e a exclusão dos brasileiros menos favorecidos.

Oito meses atrás, o fato de que estávamos indo muito devagar junto a economia mundial, nos abrindo para mudanças climáticas potencialmente catastróficas, era mais ou menos correto.

E dessa forma, que fico pensando em não querer voltar a um mundo onde o sistema político está inundado de dinheiro mal-empregado, uma amarga e crescente corrupção sistêmica e onde 80% ou mais da população brasileira acredita que o sistema só funciona para privilegiados e onde grupos de interesse controlam a agenda política.

Em vez disso, quero repaginar o capitalismo, ou pelo menos nossa versão atual, ou seja, aquele que é obcecado pelo curto prazo e que não acredita que os negócios precisam se preocupar com a saúde de nossa sociedade ou de nossas instituições. Fazer isso é a melhor maneira de garantir que os negócios e nossa sociedade prosperem nas próximas décadas.

Pessoal, para mim o capitalismo é uma das grandes invenções da raça humana, uma fonte incomparável de prosperidade, oportunidade e inovação. Não resolveremos os problemas que enfrentamos sem ele. Para resolver a desigualdade, precisamos de bons empregos e muitos deles. Para resolver a mudança climática, precisamos (entre outras coisas) transformar os sistemas mundiais de energia, transporte e agricultura. Somente a pressão implacável do mercado livre pode impulsionar esse tipo de inovação transformadora em escala.

Nesse contexto, a pandemia é um grande desafio e uma oportunidade. Um desafio porque quase um milhão de pessoas já morreram, a economia global foi fortemente afetada e dezenas de milhões de pessoas perderam seus empregos.

E quando falo que é uma oportunidade porque também nos mostrou claramente o que está errado. A desigualdade não é mais simplesmente uma ideia abstrata. É uma realidade que muitos trabalhadores “essenciais” devem comparecer mesmo quando estão doentes, porque não têm economias e nem férias remuneradas.

À medida que o céu clareia e as primeiras pesquisas mundiais sugerem que a redução da poluição por combustíveis fósseis está salvando vida, os custos de continuar a depender de energia suja se tornaram muito mais tangíveis. Assistir a uma disputa entre estados por equipamentos médicos vitais enquanto o governo federal se atrapalha em sua resposta ao vírus tornou muito clara a realidade de nossa política falida.

A pandemia nos lembrou de que permanecemos e caímos como sociedade e que o bem-estar dos mais pobres entre nós é parte integrante do bem-estar de todos. Ela nos mostrou que planejar o futuro é essencial e que, quando as coisas estão ruins, um governo capaz e responsivo é uma necessidade, não um palavrão. Aprendemos que, quando precisamos fazer algo, sim, podemos.

Mudanças fundamentais não parecem mais impossivelmente fora de alcance!

Podemos fazer melhor, já temos os recursos e o conhecimento de que precisamos para construir um capitalismo mais justo e sustentável. Mas, para chegar lá, as empresas terão que mudar a forma como entendem seu papel no mundo (e no Brasil em particular) e como pensam sobre o governo.

Embora os mercados livres sejam uma fonte incomparável de prosperidade e liberdade, o mercado livre só pode nos levar aonde precisamos ir se as externalidades, como a poluição do carbono, tiverem um preço adequado, se houver liberdade genuína de oportunidade e se as regras do jogo forem de forma que a competição seja livre e justa. Os mercados não se policiam; eles devem ser equilibrados por governos transparentes, capazes e democraticamente responsáveis.

Hoje, em grande parte devido ao aumento da primazia dos acionistas, o papel crescente do dinheiro na política e o ataque sistemático ao governo como uma instituição necessária ou eficaz esse equilíbrio está praticamente ausente. Como resultado, uma das rotas mais rápidas para a rentabilidade é muitas vezes para convencer os políticos a escrever as regras em seu favor.

Não estou sugerindo que as empresas negligenciem seus deveres para com seus acionistas. O foco na lucratividade é essencial para que uma empresa prospere no mercado altamente competitivo de hoje. Mas a maximização do lucro sempre foi um meio para um fim, justificado pela ideia de que quando os mercados são genuinamente livres e justos, há boas razões para acreditar que eles levam tanto à prosperidade quanto à liberdade.

Mas quando os mercados não são mais controlados por governos que podem policiar as regras do jogo, controlar apropriadamente as externalidades ou fornecer os bens públicos necessários para apoiar oportunidades reais, eles se tornam poderosos demais para seu próprio bem. A resposta pandêmica caótica e desigual que estamos experimentando hoje flui diretamente de várias décadas tratando o governo como algo que deveria ser ” afogado na banheira “.

Agora, mais do que nunca, acredito que as empresas têm não apenas o dever moral de contribuir para a saúde das instituições que mantêm nossa sociedade forte e nosso capitalismo genuinamente livre e justo, mas também um interesse econômico em fazê-lo. Precisamos reconstruir nossa democracia, fortalecer nossa conversa pública para que seja firmemente baseada em fatos e respeito mútuo, nos comprometer com tudo o que temos para construir uma sociedade inclusiva para todos, e sim, encontrar maneiras de redescobrir a importância de ser democraticamente responsável, capaz, e um governo responsivo.

Sim, as empresas privadas podem oferecer empregos melhores pagando aos funcionários um salário decente e fornecendo treinamento contínuo, entre outras medidas necessárias, mas só vamos enfrentar com sucesso a desigualdade e o preconceito em escala por meio de reformas estruturais, se pudermos fazer coisas como:

Fornecer educação de qualidade e cuidados de saúde para todos, independentemente da renda;

Aumentar o salário mínimo;

Encontrar maneiras de dar aos funcionários mais poder enquanto negociam com empresas cada vez mais poderosas;

Mais fundamentalmente, só reconstruiremos a confiança no sistema político e, com ele, um governo que seja genuinamente receptivo às pessoas comuns, se conseguirmos tirar dinheiro da política. Essas são simplesmente tentativas de bloquear a ação de que precisamos para construir uma sociedade mais justa.

A ação coletiva, um esforço sustentado por coalizões de empresas pode fazer uma enorme diferença para ajudar a impulsionar esse tipo de mudança institucional. As empresas já estão trabalhando juntas para resolver alguns dos problemas mais difíceis do mundo. Um terço do capital investido mundial já está comprometido em exigir que as empresas em suas carteiras planejem o desafio das mudanças climáticas. As empresas em todo o mundo estão cada vez mais percebendo que governos democraticamente responsáveis, eleitos livremente e capazes são essenciais para a saúde econômica de longo prazo e estão dispostos a dizê-lo em público.

Mas eles precisam fazer mais!

Pessoal, a democracia está em apuros. As empresas devem ajudar a consertá-la. O fortalecimento da democracia é a única forma de garantir a sobrevivência do capitalismo de livre mercado.

Posso sentir seu ceticismo enquanto escrevo. Você deve se perguntar:

Os negócios podem realmente mudar e ajudar o governo a mudar junto com isso?

Ele pode abraçar uma versão do capitalismo que se concentra no longo prazo e no bem comum?

Pode ajudar a reconstruir o poder das próprias instituições que são necessárias para mantê-lo sob controle?

Vejam o exemplo da Unilever, as chamadas marcas “orientadas para o propósito” estão crescendo muito mais rápido do que o resto do portfólio, pois os consumidores votam cada vez mais com suas carteiras.

Mudar em uma escala mais ampla será muito mais difícil. Mas não impossível.

Passei mais 20 anos de minha carreira estudando e pesquisando sobre inovação e estratégia. Em boa parte disso, fui literalmente alçado a fazer implantações de projetos voltados a inovação para empresas, ao mesmo tempo foi profundamente irônico, já que passei a maior parte desse tempo tentando entender por que empresas grandes e bem-sucedidas como por exemplo a Kodak tinham tantos problemas para responder com eficácia quando o mundo ao redor mudava.

A essa altura, a história da empresa é bem conhecida. A Kodak já foi uma das empresas mais bem-sucedidas do mundo. A empresa inventou a fotografia comercial clássica baseada em filme e a usou para construir uma das marcas mais icônicas do mundo. Como observou um vice-presidente sênior e diretor de pesquisa da Kodak em um artigo em 1985, ele disse: “Estamos mudando para uma empresa baseada em informações … [mas] é muito difícil encontrar qualquer coisa [com margens de lucro] como fotografia colorida que seja legal.” Mas a Kodak faliu em 2012, não conseguindo dominar a transição para a fotografia digital.

A comunidade empresarial agora enfrenta uma transição semelhante. Nós sabemos que precisamos mudar. Mas muitas vezes é tentador imitar a Kodak, alegando que a mudança virá, mas não agora. Insistindo que é mais lucrativo seguir os métodos antigos, que se for realmente importante, faremos algo novo, mais tarde. Mudar é difícil. Não é surpreendente que estejamos lutando para adotar novas maneiras de pensar sobre o mundo e o papel dos negócios nele.

Pessoal, estou esperançoso. Não otimista, no sentido de que tenho certeza de que tudo vai dar certo, não tenho certeza disso. Mas esperançoso. Como espécie, temos o dom de resolver problemas. A Kodak não conseguiu gerenciar a transição digital, mas Nikon, Canon e Fujifilm continuam sendo empresas de bilhões de dólares. Milhares de empresas e milhões de pessoas estão agora explorando maneiras de resolver nossos problemas comuns.

Enfim, podemos aprender com os horrores da pandemia. Nós devemos. Não precisamos voltar ao “normal” em vez disso, precisamos repaginar o capitalismo. Precisamos encontrar uma maneira de equilibrar a energia do mercado livre com o poder de um governo competente e responsivo. Juntos, eles podem nos ajudar a construir um mundo mais justo e sustentável.

Dessa forma, devemos ter cuidado para o “Momento Kodak” voltado para o mundo.

Pense nisso.

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