A precisão dos números
DAS VOLTAS E DOBRAS DO TEMPO
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“Tudo é precioso para aquele que foi, por algum tempo, privado de tudo ” (Friedrich Nietzsche)
A precisão dos números marca o tempo das máquinas e do dinheiro.
O tempo do amor se marca com o corpo.
Um calendário é coisa precisa: anos, meses, dias, horas, que são marcados com números. Esses números sinalizam e dão a noção que temos do tempo.
Mas os pedaços de tempo são bolsos vazios; nada há dentro deles.
O bolso vazio do tempo se torna parte do nosso corpo quando o enchemos com vida.
Então o tempo deixa de ser apenas números frios e sem humanidade.
O tempo aparece como um fruto que vai sendo comido:
é belo, é colorido, é carnudo e perfumado.
E – à medida que vai sendo devorado -, transmuta, transparece e flui.
O tempo da vida é marcado por alegrias e tristezas.
Há indícios, inícios e há fins.
*Tempus fugit; o tempo foge.
Portanto, Carpe diem: colha o dia como um fruto que amanhã estará podre.
Viver ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio.
*”Sapio”, no latim, quer dizer, “eu saboreio”.
O sábio é um degustador da vida.
A vida não é para ser medida.
É um portentoso banquete.
Ela é para ser saboreada.
Um texto bíblico diz:
“Ensina-nos a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos um coração sábio”. Claro, só pode ser palavra do mestre da Palavra.
Acho que Jesus entenderia se eu acrescentasse ao “Pai-Nosso” uns pitacos tipo…”A fruta nossa de cada dia dá-nos hoje…”.
Caqui, pitanga, morango à beira do abismo, melancia, banana,
manga verde com sal em cima do pé no quintal do vizinho…
*Heráclito foi um filósofo grego fascinado pelo tempo.
Contemplava o rio e via que tudo é rio.
Percebeu que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio; na segunda vez, as águas serão outras, o primeiro rio já não existirá.
Tudo é água que flui: as montanhas, as casas, as pedras, as árvores, os animais, os filhos, o corpo…
Assim é tudo, assim é a vida: tempo que flui sem parar.
Daquilo que ele supostamente escreveu, restam apenas fragmentos enigmáticos.
Dentre eles, um me encanta:
*”Tempo é criança brincando, jogando; da criança o reinado”.
Tempo é criança?
O que o filósofo queria dizer exatamente eu não sei.
Desconfio que para nós, o tempo é um velho, cada vez mais velho, sobre quem se acumulam os anos que passam e de quem a vida foge.
Heráclito, ao contrário, diz que o tempo é criança, início permanente, movimento circular, o fim que volta sempre ao início, fonte de juventude eterna, possibilidade de novo começos.
Ficam os buracos do tempo, os sulcos de lembranças.
*A saudade é o que faz as coisas pararem no Tempo.(Mário Quintana)
Percebo também que as crianças odeiam Chronos, o deus dos cronômetros, dos segundos, dos centésimos de segundos. Da suposta exatidão inexorável do tempo dos homens.
O relógio é o tempo do dever: corpo engaiolado.
Portanto,
“Haja hoje para tanto ontem” (Paulo Leminski)
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Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor/pesquisador que perdeu a noção do tempo material e do relógio de pulso há tempos. Vive na Guarda do Embaú, pequena comunidade de pescadores no litoral Sul de SC.