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Roda

De repente, uma multidão em torno de manchas de sangue no chão

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ernesto caminhava distraído, tropeçando nas irregularidades da calçada, uma expressão de tristeza no rosto. Fora ao médico, e os resultados de seus exames não eram nada bons…

De repente, viu uma multidão agrupada em torno de manchas de sangue no chão. Aproximou-se, e viu que um homem contava com profusão de detalhes o ocorrido. Tinha uma voz estranha, meio mecânica, mas parecia sentir verdadeira volúpia em narrar:

– Era um casal conhecido por suas brigas, seu Antenor Cravo e dona Rosa, mas a de hoje foi a última. Ela o feriu gravemente, com um punhal, mas ele a deixou em pedaços, com um machado. Seu Cravo está no hospital e vai de lá para a cadeia, o cadáver de dona Rosa já foi encaminhado ao Instituto Médico Legal.

Ernesto continuou a andar. Os nomes do casal lhe deram uma ideia do que estava acontecendo.

Três quarteirões adiante, novo grupelho, novo arauto de voz mecânica:

– …e a viúva era cortejada por um general e um moço rico. Preferiu, o jovem, e o general, furioso, o atacou com a espada. Por sorte, a vítima sofreu apenas ferimentos leves; o general, por sua vez, foi detido.

Ernesto fez a pergunta que confirmaria sua hipótese.

– Pode dizer se o pai do moço se chama Conde?

– Sim, é o juiz Olívio Conde – respondeu o arauto, manifestando alguma surpresa. – Um magistrado influente, o general vai passar muito tempo atrás das grades.

Ernesto sentou-se em um banco de uma praça nas proximidades. Sabia o que se passava: tradicionais cantigas de roda haviam descartado seu conteúdo infantil e se tornado adultas e mesmo tenebrosas. Por que isso estava acontecendo? Ora, porque as crianças não brincavam mais de roda, não aprendiam as cantigas infantis tradicionais, ficavam o tempo todo às voltas com seus celulares. Daí a revolta das cantigas de roda, a sinalizar que algo estava fora dos eixos com a gurizada.

Pensou em seguida nas duas cantigas de cuja dramatização soubera, na clássica “O cravo brigou com a rosa/ Debaixo de uma sacada/ O cravo saiu ferido/ E a rosa, despedaçada.” E na segunda, mais elaborada, com verbos na segunda pessoa do plural: “Dizei, senhora viúva/ Com quem quereis se casar/ Se é com o filho do conde/ Se é com seu general.” Ambas foram narradas fielmente pelos arautos – criaturas inumanas, percebia agora, a serviço de quem ou o que tivesse desencadeado o fenômeno. Então, provavelmente seu Cravo, dona Rosa, o filho do conde e o general tampouco eram humanos, eram infinitesimais as chances de que dois crimes “descritos” nas cantigas ocorressem na mesma ocasião, a poucos quarteirões um do outro. Já os ouvintes dos relatos eram sem dúvida humanos. “Quanto a mim”, pensou amargurado, “sou de carne e osso. Carne, osso, células sadias e células cancerosas, estas em número cada vez maior”.

Prosseguindo em suas reflexões, concluiu que a coisa devia estar acontecendo em diversos outros pontos da cidade, talvez por todo o país e quem sabe em escala internacional. Ele identificara, em poucos minutos, duas cantigas de roda em quatro quarteirões, devia haver muitas mais… Isso lhe deu uma pitada de esperança.

Ernesto levantou-se do banco e passou a andar mais rápido, uma expressão decidida no rosto. Passou por dois grupinhos com os respectivos arautos, sem se deter; finalmente, avistou o que buscava: uma roda, traçada no chão com pedrinhas brancas. Não havia ninguém nas proximidades.

Ele obedeceu à letra da cantiga como se fosse um manual técnico de instruções. Primeiro, foi para o interior da roda; depois, disse um verso bem bonito – um de seus sonetos prediletos, sentiu que rimas eram importantes, vai que versos brancos engripavam o mecanismo. Por último, pronunciou bem forte a palavra “Adeus”.

E começou a desmaterializar-se, a ir-se embora. Sem dor, como ardentemente desejava.

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