Os eleitos
Deuses do futebol brasileiro nem sempre têm o aval do Deus verdadeiro
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No futebol brasileiro existe sempre um grupo especial, quase mítico, composto pelos que parecem escolhidos pelos deuses da bola. Nelson Rodrigues diria que são profetas em chuteiras. Eu prefiro chamá-los de eleitos. Não porque sejam santos, mas porque carregam no corpo uma espécie de destino inevitável, uma luz que tanto revela quanto condena.
Neymar foi o eleito de uma geração inteira. O menino que encantou o mundo e que poderia ter redesenhado o mapa afetivo do futebol brasileiro pós-2006. Recebeu o dom, a fama e o dinheiro em doses que matariam um adulto acostumado a responsabilidades, imagine então um adolescente. Mas ser eleito não significa ser preparado. Neymar não foi. Carregava o gênio e a fragilidade, a arte e a inconsequência, a genialidade e a imaturidade. Era o protagonista sem roteiro, entregue a um clã que transformou sua vida em máquina de negócios e, assim, o empurrou para o grotesco. Os eleitos, às vezes, são vítimas do próprio brilho. E Neymar, já no declínio de sua carreira, é o exemplo mais perfeito dessa tragédia moderna em que fama demais e limite de menos destroem o herói enquanto o público ainda pede bis.
Estevam, por sua vez, é o eleito em estado embrionário. A joia que carrega o que Neymar nunca teve: blindagem emocional, família estruturada, ambiente que protege em vez de explorar. O garoto tem algo raro no Brasil: a chance real de escapar da sina trágica que acompanha os prodígios. Não há sinais de deslumbramento, não há cheiro de oportunismo no entorno, não há a ânsia por transformar cada passo em moeda. Se continuar assim, será o eleito que deu certo. O menino que virou homem antes que o mundo tentasse corrompê-lo.
Vinícius Junior, diferente dos dois, vive um sacerdócio intermediário. Já foi eleito, já sofreu, já aprendeu. Vive cercado por tentações modernas, e a presença de Virginia nesse universo funciona como símbolo do risco constante que ronda seu nome e sua trajetória. Mas Vinícius mantém prudência. Sabe onde pisa. Sabe até onde pode ir. Não é santo, mas também não é personagem de si mesmo. Se Neymar é a tragédia que virou espetáculo, Vinícius é o drama que se equilibra. Ele não recusa a fama, mas a controla. Ou, no mínimo, tenta. E isso já o coloca dois passos adiante.
Os eleitos sempre caminham entre o céu e o esgoto. É o preço da idolatria, da responsabilidade nacional, da projeção global, do culto coletivo que faz do jogador um semideus por 90 minutos e um mero mortal quando o apito final ressoa. Nelson Rodrigues compreendia isso melhor do que ninguém. Em cada drible via pecado, em cada gol via redenção, em cada derrota via uma tragédia shakespeariana escrita sob o sol do Rio de Janeiro.
Neymar, Vinícius e Estevam são capítulos dessa mesma epopeia. O primeiro caiu em tentação. O segundo tenta não cair. O terceiro ainda nem chegou ao altar, mas já carrega no olhar uma maturidade que contraria a lógica do estrelato precoce.
Os eleitos não são perfeitos. São humanos. Mas, no Brasil, exige-se deles algo impossível: que sejam imortais. E quando não são, o público se espanta, como se o erro fosse um desvio e não uma certeza.
A verdade rodrigueana é simples: Deus escolhe, mas o mundo molda. Alguns se perdem. Outros se salvam. E alguns, raríssimos, conseguem atravessar a fama sem perder a alma.
Estevam ainda pode ser um desses. Neymar, definitivamente, não foi. Vinícius tenta, entre tropeços e glórias, provar que é possível.