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O vagalume e o exílio

Dor da guerra provoca exilio da infância inocente

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e Imagem

A escolinha ficava na curva do estradão. Longe de lá havia a casa grande e a fazenda aos pés da serra da Mantiqueira. O pai servia as vacas todas às madrugadas com capim gordurão e, de embornal trançado no peito, corria para a escolinha atrás da instrução. Entre outras histórias, tem a da cobra.

Certo dia, ao servir as vacas, lá no cesto estava a terrível urutú-estrela. A picada foi quase fatal. O pai agonizou durante dias até que feito um Perseu que voa com suas sandálias aladas, que não volta jamais o olhar para a face da terrível Medusa mas apenas para a imagem que vê refletida no escudo de bronze, rasgar com o canivete, em delírio, a bolha pustulenta que o convidava para o passeio ao além, além do sonho do rádio que ainda iria sonhar, do trem, das plataformas e da mulher com os filhos que um dia viria a ter.

Claro está que ele não aceitou o insinuante convite da víbora e deste saio ileso. O pai-menino, livre para correr em busca da instrução e para construir a sua metáfora de um dia ser homem, um homem do mundo.

A chuva caia sobre o vale do Paraíba e volta da escolinha tornara-se um desafio. O pai acelerou os pés de anjo e encarou o barro. Lá pelas tantas passou um caminhão. A corona foi quase que inevitável. Uma criança correndo na chuva? Quem não proporia um atalho contra a distância e o frio da água que a tudo molhava?

O pai subiu na carroceria do pequeno caminhão. Pisou firme por sobre o encerado até se acomodar e curtir o prazer da ajuda. Anos depois, ao nos contar este episódio, o pai jamais demonstrou qualquer traço de medo, decepção ou desconfiança. O fato é que tudo estava lá. Os primeiros contatos com a história dos homens; com a dor dos homens que primam por destruir as coisas, o entorno e a vida dos seres em nome de conceitos e ideias que jamais poderão brotar nova vida.

Ao pisar mais forte, tentando se acomodar na rabeira do velho fordinho – que pulava mais que as vacas quando ele trazia o gordurão para a refeição matinal -, o pai sentiu algo mole sob os pés, como se o mundo começasse a se esfacelar. Havia um dilema colocado ali. Levantar ou não o encerado?:

– Meu Deus! Nunca sei quando tomar a atitude certa, na hora certa! Sei que estou pisando em alguma coisa que não é gordurão, nem vaca morta, nem um carregamento da geleia que a mãe Cristina me dá nos cafés das manhãs… mas… eu quero olhar; quero ver tudo o que há para ser visto!, pensou o menino.

Décadas depois, nos descreveria em detalhes o ocorrido ressaltando que aquele fato recuperado da infância lhe havia dado “a perfeita noção de que as coisas não têm paz”.

Tomou coragem e decidiu levantar o encerado. A chuva cobria tudo. Não foi preciso muito esforço para descobrir a imagem que o marcaria pela vida. O som da voz humana, quase um fiapo de voz, o alertou antes da descoberta crucial:

– Pelo amor de Deus, pisa mais forte e acaba de me matar!…a dor é insuportável!

Ao levantar a ponta do encerado, o pai encontrou vários corpos de jovens soldados, destroçados e empilhados, como a carne das vacas que ele alimentava e depois acabariam no matadouro da velha cidade. Era a guerra de 1932, na divisa da São Paulo com Minas, ao pé da serra da Mantiqueira, onde existiu a fazenda de nossos avós e também um menino, com os olhos d’alma, que amava as vacas provedoras de leite e que, a partir daquele dia, aprendeu a amar e a chorar frente às circunstâncias dos homens.

Após este dia, o pai jamais seria o mesmo; às vezes, sem razão aparente, ele tocava na terrível estória da urutú-estrela. Como sempre, esboçava o sorriso matreiro – mais para mineiro do que para paulista -, enquanto acariciava o grosso bigode, num ritual de dúvida e de alívio. Poucas vezes, ao contar-nos outras histórias, o pai retornou ao episódio dos pracinhas paulistas. De certo mesmo, permanece a impressão de que o horror da guerra, para sempre, determinou a perda da inocência e o seu definitivo exílio da infância.

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