Curta nossa página


Chulé, o maltrapilho

Dor no peito mata homem que não tinha nome

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução das Redes Sociais

Chulé perambulava pelas quadras. Descalço, ainda assim o odor dos pés era algo indescritível, que saltava aos olhos, que lacrimejavam por conta do flagrante horror. Feridas purulentas, intratáveis ou, então, deixadas de lado, que faziam aquele homem claudicar por avenidas, ruas e vielas, metendo-se em becos sem saída, plena escuridão, o destino sombrio.

Se alguém sabia o nome do moribundo, parece que guardou para si. Era conhecido por Chulé, mas outras alcunhas também costumavam, vez ou outra, ser utilizadas com o mesmo asco: Catinguento, Pestilento, Podre e até mesmo Mefítico. Este último apelido, obviamente, fora dado por um estudioso da nossa rica língua, o Epaminondas.

Aliás, para quem não sabe, Epaminondas é um nome grego. com significado condizente com o nosso sábio conhecedor das palavras. Pois tal epíteto quer dizer justamente aquele que está acima do melhor. Dessa forma, percebe-se claramente o abismo que separava aqueles dois seres, que perambulavam pelo mesmo bairro, pelas mesmas avenidas, as mesmas ruas e, provavelmente, vielas idênticas. No entanto, era óbvio que ocupavam nichos diferentes, tamanho o disparate entre mundos tão distintos.

Epaminondas, do alto dos seus luxuosos sapatos, seria capaz de flutuar apenas para não ter o desprazer de pisar sobre o pus deixado pelo andrajoso. Que nojo! Chegava a ter ânsia. Pegava o lenço no bolso do elegante paletó, colocava-o sobre as narinas e os lábios e seguia o caminho dos bem-aventurados.

Quanto ao Chulé, talvez nem mais se dava conta do desprezo ou, então, de tão acostumado, já o carregava em algum dos bolsos furados da calça puída. Não queria mais viver, mas sobrevivia às custas das sobras de algum afortunado com olho maior do que a barriga, que teria colocado mais feijão no prato.

O moribundo rastejava ligeiro para não ser vencido por um dos inúmeros ratos do esgoto. Ali, tudo era esgoto, que já não fedia tanto às narinas insensíveis do Chulé. Acostumara-se. Melhor, sem opção, conformara-se.

Causador de tantos embrulhos nos estômagos alheios, eis que, certa madrugada, Chulé sentiu uma pontada no peito e se viu à beira da morte. Arrumou coragem não se sabe de onde para vencer os quase dois quilômetros que o separavam do hospital. Mal chegou, cambaleou, mas conseguiu se apoiar na caçamba de lixo. Puxou aquele ar pútrido que lhe era tão íntimo, deu dois passos e tombou. Morto, não fechou os olhos, talvez espantado pela própria desgraceira.

O corpo do maltrapilho foi encontrado por um vigilante logo pela manhã. Acudiu-lhe o médico de plantão, que nada pode fazer, a não ser atestar, de tão óbvio, o óbito. Alguém perguntou pelo nome do defunto. Ninguém soube responder. Já era tarde para perguntar.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência Estadão, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.