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Como antigamente

Escultor de ruínas, o Tempo deve ajudar Júlio a trazer o que Júnior deixou para trás

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Antigo que sou, nunca consegui alcançar a necessidade de os deputados e senadores preferirem a corrupção à honestidade. Basta que sejam eleitos e o povo vira somente um detalhe. Por que até hoje não vejo diferença entre o mara e o cujá? Pura falta de tempo. Também me faltou oportunidade para correr atrás da fórmula de amar sem sentir dor dos porcos espinhos. O mais complicado foi tentar, tentar e não entender a razão pela qual, nos velhos tempos, os homens precisavam pedir a mão das meninas em casamento. E não entendia porque, mão concedida, os meninos já imaginavam o todo da pretendida.

Aliás, não sei se me entendem, mas, após a concessão, o que menos os machos alfas pensavam era nas mãos das então donzelas militantes.

Sinal ou final dos tempos? Depende do ponto de vista. Como tudo era precoce, inclusive a ejaculação, nem sempre a meninada tinha tempo para pensar se o que podia era mão na mão, mão naquilo, aquilo na mão ou aquilo naquilo. Melhor esquecer o quilo. Para não ser injusto, elas, as mãos, normalmente serviam como eventual apoio para o Pif-Paf ou para o bofetão nos casos em que a ultrapassagem de limites desobedecia ao sinal fechado. Aí era um Deus acuda.

Os piores momentos ocorriam quando as moçoilas pediam socorro às genitoras. Perdão pelo cacófato, mas imaginem a estridência repetida do grito de acuda mamãe, acuda mamãe. Podia ser ruim, mas era bom por demais. De tão duro de aguentar, um dia a casa caia. Claro que, sem conhecimento algum de escoras, os homens caiam junto. Na verdade, a metafórica queda normalmente acabava em festa matrimonial e, quando de comum acordo, gerava ninhadas de rebentos (as) variados (as). As minhas até hoje não me deixam mentir, mas, verdade seja dita, pelo menos uma delas está rompida comigo desde o dia em que pedi para que ela me passasse o jornal.

Por conta da diferença existencial, após a resposta de que jornal é coisa do passado, ela me passou o Iphone 8 recém-adquirido. Para não alongar demasiadamente a história, a mosca está morta, o celular de última geração todo quebrado e ela chorando até agora. Mas o que fazer se a distância de nossas linguagens e pensamentos é maior do que o amor que nos une. Como antigo que sou, sinto tanta falta do tempo em que os padres faziam rifas de verdade. Hoje é só frango assado e pano de prato. Saudade das coisas que eu usava sem a necessidade de tanta tecnologia. Por exemplo, um ferro de engomar servia para tudo, inclusive para enrijecer o touro vermelho antes do encontro com a novilha amarela.

Infelizmente, o tempo é um escultor de ruínas. Não fosse, até hoje teria guardado o casaco de couro que ganhei de meu avô Aristarco Pederneira. Lindo como ele só, o capote ou jaqueta, como denominávamos à época, foi confeccionado com a pele da fimose do touro Stallone, irmão mais velho da vaca Abigail, ambos os preferidos entre os quadrúpedes da criação de vovô. Dos bípedes do quintal, o pintinho Relan ganhava de barbada. De tão mimado, Relan dormia debaixo da cama do velho. Não sei se interessante, extraordinário ou fantástico, mas Relan piava toda vez que chovia forte. A briga do pinto Relan era com o papagaio de cabeça raspada.

Um dia conto com detalhes o motivo da perda de penas da cabeça da ave falante. Por falta de tempo, o que posso dizer é que ele foi flagrado em situação de inconveniente saliência. De modo a não confundir com a fêmea do vizinho, vovô meteu-lhe a tesoura. Touros, novilhas, pintos e papagaios à parte, hoje eu sei que o tempo é relativo. Na verdade, nem sempre. Ele passa devagar ou rápido demais dependendo de que lado da porta da casinha a gente está na hora da urgência do número dois. Sem tempo e saco para decidir se fico na esquerda ou se fujo da direita me enviesando para o centro, ano que vem eu dou um jeito na minha vida. Este ano não dá mais tempo. Que pelo menos Júlio traga coisas que o Júnior não trouxe.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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