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Efeitos analterais

Exame que faz gemer sem sentir dor é como viver ‘Emoções’ do rei

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo/Reprodução - X

Depois das noites quentes de verão, fui abduzido para uma dessas noites traiçoeiras. Sei que Cristo estava comigo, mas a cruz foi mais pesada do que o previsto pelo gastroenterologista, médico que, a pedido do urologista, me tascou o dedo e a maquininha de fotografar interiores no casulo. Foi a segunda dedada ou o fio terra autorizado em menos de três mês. Inicialmente, devo dizer que, na solidão do meu catre, sofri horrores com o maldito preparo para a colonoscopia, nome científico para um toque de alta profundidade na alma do girassolcaneco.

E não foi um toquezinho qualquer. Foi um toquezão, muito pior do que a íntima e prazerosa (para alguns) dedada do urologista. Falo do meu uro de forma especial. O problema é que o Parkinson dele está em estágio avançadíssimo e não me permite mais viagens do tipo psicodélicas e transcendentais. O exame que me fez chorar rios de lágrimas por todos os poros ocorreu na tarde dessa sexta-feira, também conhecida por ontem. Honestamente, ainda não tenho opinião formada sobre o antes e o depois da dolorida e dolorosa experiência no ofuror.

Não dói de doer, mas, para um macho alfa como eu, é de matar ser introduzido invasivamente pelo caneco por um estranho. Do ponto de vista do mal em gestação, isto é, do ovo da serpente, vi mais nocividade no preparo para penetração do cano cientificamente chamado de colonoscópio. Encher o toba de laxantes do tipo óleo de rícino é o mesmo que nos levar de cinco em minutos ao trono. Fui guindado a essa condição de rei sem coroa madrugada adentro. Eram chuvas com rajadas frescas. Algo como gemer sem sentir dor. Forte como um leão no cio, me lastimei, pranteei e até uivei, mas aguentei o purgante e seus efeitos analterais.

São detalhes de uma noite que jamais esquecerei. O pior (ou o melhor) ainda estava por vir. Muitos irão dizer que tive sorte com a mão leve do doutor especializado no fiofó alheio. Todavia, acho que foi a fé que me fez otimista demais, pois, mesmo sedado, em nenhum momento me afastei do âmago da virilidade do cidadão de jaleco. Não fiz isso por prazer, mas por medo dele me enfiar no cubículo algo que me gerasse arrependimentos por não ter ficado mais tempo em decúbito dorsal. Como Deus é top, aprontei minha melhor cara de rola no canavial e autorizei o doutor a, literalmente, sentar a pua, que também quer dizer botar o pau na mesa.

Macho como o mamão, me coloquei em posição de sentido e, enquanto seguiam o protocolo médico, eu de cá ouvia de tudo um pouco. Eram palavras rimadas, tais como o enfermeiro explica, o anestesista aplica e o especialista tasca a salpica. Do conversê ao enfiamento colonoscópico, foi um longo e tenebroso tempo de espera. Ainda que as ondas curtas e médias estivessem fora do ar, usei as longas para instintivamente acompanhar o procedimento. Fiz questão de, temporariamente, esquecer a noite anterior sem lua, sem sereno, sem estrelas e sem serenatas, mas com algum temor.

Escornado naquela maca, descansei o espírito, estendi o sol na varanda, viajei de uma só tacada de Londres a Lumiar e torci para não gostar. Não sei se era sonho ou pesadelo, mas antes, durante e depois senti duas lágrimas escorrendo dos olhos. Uma de cada zolho. Felizmente, não eram de prazer. Estou sempre aberto ao diálogo, mas, dessa vez, não adianta perguntar seu eu chorei sorrindo ou se sorri chorando. Nem sob tortura responderei indagação tão perturbadora. No entanto, plagiando Roberto Carlos, posso afirmar que emoções eu vivi.

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