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As histórias do tio Juvêncio

Frete de tudo e pra todo lado, mas a ribanceira…

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Tio Juvêncio não parava em casa. Bastava chegar de uma viagem, lá ia o homem arrumar carga para levar de um local para outro. Fosse o que fosse, não importava. Lembro até de um afamado galo de briga, vendido a peso de ouro, que foi parar num sítio lá pros lados de Sobral, a hoje tão falada terra do Belchior.

O bicho, crista que parecia até topete de cantor de rock, era garboso, charmoso e até cheiroso, tudo por conta de algumas providenciais gotas de perfume francês. Pulmões em dia, que não deixavam o galo na mão quando era preciso dar esporadas na cara dos adversários. Não ficava um de pé.

Meu tio, com o galo nos braços, me convidou para ir com ele. Olhei para mamãe, que, apesar da cara de contrariada, concordou com um sorriso que só ela sabia fazer. E lá fui, aos oito ou nove anos, fazer a minha primeira e última viagem naquele caminhão que bem poderia ter saído de um filme do Mazzaropi. Sai da frente!

Naquela noite, nos idos de 1960, pegamos a estrada. Sentado ao lado do meu tio, minhas pernas não alcançavam o piso do caminhão, que já me parecia antigo naquela época. O galo, que soube se chamar El Matador, devidamente acomodado em uma caixa forrada com jornal velho, ficou entre nós dois.

Tio Juvêncio contava um causo novo a cada curva. El Matador e eu não tirávamos os olhos daquele homem que havia passado por um mundaréu de histórias. Desde lutas contra três bandidos, que o pegaram à traição durante a troca de um pneu furado, até encontro com onça-pintada, sem esquecer das belas senhoritas que se apaixonaram pelo meu parente. E como não se apaixonar por aquele tipo tão simpático e cheio de vida?

E antes que você pense que aqueles três assaltantes levaram a melhor contra meu tio, já vou dizendo que está muito enganado. Capoeirista dos bons, foi sopapo pra todo lado, mas apenas em dois dos criminosos. É que o terceiro fugiu que nem galo velho no dia da degola.

Quanto à onça-pintada, ela apareceu em um bar lá pro lado de Icatu, Maranhão. Enquanto todos ficaram apavorados diante daquela força da natureza, tio Juvêncio teve uma conversa quase ao pé do ouvido daquele bicho enorme.

— Dona Onça, aqui quem fala é Juvêncio Campos Sousa, seu criado. Vim preparado pra paz e pra guerra. É a senhora que decide.

A onça encarou meu tio, que aproveitou para cofiar os bigodes. Ela rugiu tão alto, que todos se ajuntaram que nem arroz de cozinheiro de primeira viagem. Tio Juvêncio não arredou pé, até que a onça mostrou sapiência e saiu do recinto em paz.

— Tio, mas o senhor não ficou com medo?

— Tem hora que um homem não tem nem tempo de sentir medo, Robertinho.

Depois de dois dias de viagem, deixamos El Matador em um sítio, onde ele teria uma bela aposentadoria cercado de galinhas. Não tive mais notícias dele, mas provavelmente alguns dos seus herdeiros também tiveram sucesso na rinha. A maioria, certamente, foi parar na panela.

Voltamos para casa e encontramos todos na varanda. Foi aquela alegria rever mamãe, papai, vovó e toda a parentada. Tio Juvêncio parecia satisfeito por tido a companhia do sobrinho e do galo El Matador. Acabei adormecendo nos braços de mamãe, que, no dia seguinte, me disse que foi meu tio que me levou para o quarto.

Tio Juvêncio pegou a estrada logo pela manhã sem se despedir. Somente após dois dias soubemos o que aconteceu. Ele havia dormido ao volante e, numa curva traiçoeira, o velho caminhão caiu em uma ribanceira. Falaram que meu tio teria dormido ao volante, talvez sonhando com as histórias de que tanto gostava de contar.

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