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Superpedido

Impeachment é doloroso, mas não pode ser ignorado

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Em qualquer canto do mundo, um pedido e a votação interminável de um processo de impeachment é ardido, doloroso e dolorido. Entretanto, como prega a medicina popular, tudo que arde acaba sendo bom. Exatamente como o velho e funcional merthiolate. Impedimento não é uma coisa pela qual se torce. É uma medida extrema para situações extremas. É esse o ponto a que o país chegou. Elegemos um mandatário fictício e de mil e um cansativos e desagradáveis factóides, mas que, pior do que um poste, ainda não mostrou utilidade alguma. Uma das poucas – a garantia de honestidade do governo – desceu pelo ralo com apenas um lance de um parlamentar insatisfeito. Imagina a insatisfação de um bloco, cuja fidelidade está por um fio. O termômetro dessa tempestuosa relação serão as próximas manifestações populares e eventuais rojões disparados pela maioria que compõe a CPI da Covid. O fato novo é que as cerca de 120 ações de expurgo do presidente da República foram compiladas por partidos de oposição e movimentos sociais em um único processo.

O amontoado de acusações virou um tal “superpedido” de impeachment, cujo teor não poderá ser eternamente ignorado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), como ele fez com os demais. Embora Lira tenha afirmado que não dará sequência às investigações, o clima (não o frio) das ruas e a quentura que já se observa no Palácio do Planalto certamente o farão mudar de ideia. Um impeachment é lento, caro, traumático e de difícil cicatrização mesmo nas mais sólidas democracias. Quando são sérias e não foram usadas apenas como aluguel, obviamente as dores mais lancinantes são sentidas pelas legendas atingidas. Mesmo consolidadas, as sequelas são escancaradas sempre que há “necessidade” de atingir um oponente. Se uma deposição incomoda países ricos e alicerçados no binômio paz e segurança, imagina o Brasil, que, somente nos últimos 25 anos, teve dois dos sete presidentes eleitos (incluindo os dois vices que assumiram a titularidade) jubilados a bem do serviço público.

Um deles (Michel Temer) conseguiu se livrar do paredão na metade do segundo tempo. Tudo bem que o afastamento seja um processo oneroso e complicado. Entretanto, ainda mais custoso é um país de riquezas naturais e humanas ser administrado por quem não é do ramo. De acordo com o artigo 85 da Constituição, no Brasil são cassáveis o presidente da República, ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral, além de governadores e prefeitos. Eles podem perder o cargo por indícios de cometimento de crime de responsabilidade. Conforme o artigo 2º. da Lei 1.079/50, o período máximo de cassação é de oito anos. Ou seja, passado esse tempo o impedido pode voltar à vida pública. Dessa leva mais contemporânea, Fernando Collor foi o primeiro a ser impugnado. Acusado de envolvimento em corrupção e fraudes financeiras (caixa 2), perdeu o mandato em dezembro de 1992.

Além da série de evidências, uma Fiat Elba teve participação decisiva no impeachment do presidente, conhecido à época como caçador de marajás. Durante a longa investigação, houve a comprovação de que a perua Elba, comprada para a então primeira-dama Rosane Collor, foi paga por um cheque decorrente do esquema do falecido Paulo César Farias, tesoureiro e “dono” das chamadas sobras da campanha presidencial Collor renunciou antes da formalização da cassação, mas ficou inelegível por oito anos. Segunda presidente a ser deposta, Dilma Vana Rousseff sofreu acusações de desrespeito às leis orçamentária e de improbidade administrativa, além de suspeitas de envolvimento em atos de corrupção na Petrobras. Foi afastada, mas teve os direitos políticos preservados. Nesse período, também houve tentativas mal-sucedidas de impeachment contra os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Alvo de uma série de acusações, o presidente Jair Bolsonaro, na opinião de numerosos juristas, já incorreu em vários crimes de responsabilidade. Investigado pela CPI da Covid, o principal deles diz respeito à sabotagem das políticas públicas de combate à pandemia. Na época em que o Brasil se tornou epicentro do coronavírus no mundo, o capitão se divertia promovendo a cloroquina e as aglomerações, ambas condenadas por autoridades sanitárias. Também merece destaque o ostensivo apoio do presidente a grupos que fomentam manifestações antidemocráticas e afrontosas à Constituição. Mais grave é a participação direta do mandatário ou de familiares em ameaças à integridade dos congressistas e dos ministros do STF, sempre com a perspectiva de supressão de liberdades. Além disso, há denúncias sobre a interferência do presidente da República em investigações envolvendo integrantes de sua família.

Nesse caso, conforme o jurista Mauro Menezes, está caracterizado o crime de responsabilidade contra a probidade da administração. Será que nenhum desses constitui ato indesejado pela Constituição e que coloca em xeque o Estado Democrático de Direito? A regra é clara. Se esses atos justificam a abertura e o processamento de uma solicitação de impeachment, o que está ocorrendo na Câmara dos Deputados, onde repousa pelo menos 120 desses pedidos contra o atual presidente? Me refiro inicialmente à Câmara porque, embora o jubilamento propriamente dito seja de reponsabilidade do Senado Federal, são os deputados federais que, com votos da maioria, autorizam a instauração do processo. Se nada até agora “colou” em Bolsonaro fica difícil para qualquer parlamentar negar que o sistema constitucional sofre de grave enfermidade. Quem sabe, deformidade. A pergunta que faço diariamente é simples.

Se não há urgência na análise de nenhum dos pedidos, inclusive de um “superpedido”, como justificar para eleitores e familiares as 518 mil mortes decorrentes da Covid? De acordo com o jurista Mauro Menezes, não precisa ser inteligente para perceber que, por conta da brincadeira no trato da pandemia, a cada dia mais brasileiros são transformados em número. Pode ser uma analogia extemporânea, mas no futebol presidente e técnico que não ganham títulos o clube e a torcida alijam sem chance de processo. É ganhar ou ganhar. Por isso, pergunto aos meus seis leitores diários o que o Brasil ganhou nos últimos dois anos e meio? Entristeço-me com a resposta, mas, sinceramente, nada mais do que problemas. O preço do impeachment é alto. Todavia, quanto custará ao país permanecer nessa inércia por mais ano e meio?

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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