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De quem é a culpa?

Ironizar o relatório de Renan é mais fácil do que assumir erros

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Wenceslau Araújo - Foto Edilson Rodrigues

Após seis meses de um verdadeiro circo dos horrores, o relatório da CPI da Covid, produzido pelo novo beato Renan Calheiros (MDB-AL), pode ser apelidado de tudo, inclusive de nada. Algo como um monstrengo, perseguição e até sacanagem barata contra o principal ocupante do Palácio do Planalto. O texto final pode ser sinônimo de um rosário de coisas, mas jamais será adjetivado de injusto contra quem quer que seja. Os fatos ali expostos não foram inventados, tampouco criados pela “mentes doentias” do pessoal da esquerda. Sem extremismos, paixões ou fanatismos, se houve injustiça de alguém com alguém foi do governo com o povão, rotulado, quando há interesse, de meu preclaro e queridíssimo eleitor.

Também é notório que, graças ao pouco caso do presidente da República, até agora 21 milhões 700 mil pessoas foram atingidas e mais de 604 mil morreram em decorrência da “gripezinha sem importância”. Esses números alarmantes não foram inventados pela imprensa marron, vermelha ou azul, muito menos pelas emissoras conveniadas com a administração bolsonarista. Como disse o “carola” Renan, fazer de conta de nada aconteceu significa omissão e covardia. Bem próximo da beatificação, o relator da CPI usou seu discurso de apresentação do relatório para mostrar sua tardia vocação religiosa. “A história não perdoará os omissos e condenará os covardes”, disse o senador alagoano.

Renan Calheiros escreveu, leu e assinou embaixo que o governo federal “foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia, expondo deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa”. Pelo menos para os honestos, que não se escondem sob tapetes mitológicos, é a mais pura verdade. Em campanha presidencial, o chefe do Executivo não estava no gabinete do outro lado da Praça dos Três Poderes, mas não perdeu a oportunidade de repetir uma frase que, não faz muito tempo, cansamos de ouvir: “Não temos culpa de nada. Fiz a coisa certa desde o início da pandemia”. Acusado de uma fieira de crimes, o mandatário preferiu acusar a comissão de produzir apenas “ódio e rancor”.

Perdoem-me os rancorosos fanáticos, mas parece que vivemos em outro país. De quem é a culpa? Minha, do vírus ou do povo? Não é de bom tom esticar a corda nesse momento de crise, mas valem alguns esclarecimentos que provavelmente serão negados pelo pessoal do cercadinho. A ciência foi – e ainda é – esculachada pela turma da cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Da mesma forma, as medidas sanitárias nunca foram admitidas como corretas. Pior foi a intenção oficial de imunizar a população por meio da contaminação natural e o desestímulo ao uso de remédios comprovadamente eficazes. As consequências são públicas. A prova de que os remédios prescritos pela Capitã Cloroquina e bancados pelo doutor Bolsonaro não produziram qualquer efeito sobre a letalidade do vírus são os números.

Qualquer um de nós conhece dezenas de patrícios que consumiram caixas e caixas do medicamento fajuto e acabaram a sete palmos. É mentira que o controle da doença só começou a ser notado depois do início da vacinação em massa? Será que alguém ainda tem coragem de negar que, não fosse a imunização recomendada pela medicina legal, talvez ocupássemos hoje um país com duas ou três dúzias de brasileiros? O Brasil e o mundo sabem que, a exemplo de qualquer outro mandatário, Jair Bolsonaro não foi o causador da pandemia. Todavia, é inegável que ele foi o autor, mentor, incentivador e manipulador de uma política negacionista que resultou em milhões infectados e milhares de mortes. Isso também é notório.

Por conta disso, não há injustiça alguma na conclusão da CPI da Covid, que entendeu ser o presidente da República um dos principais responsáveis pelo agravamento da pandemia de coronavírus, cujo desfecho são mais de 600 mil pessoas transformadas em dígitos. Portanto, pedir o indiciamento por crimes contra a humanidade e crimes de responsabilidade é o mínimo contra quem brincou de governar e desrespeitou pelo menos dois terços da população brasileira. O outro terço não só aceitou, mas também participou da brincadeira de ser mito. As mais de mil páginas do relatório ainda precisam ser aprovadas para envio à PGR, onde será analisada pelo polibolsonarista Augusto Aras.

Por isso, a CPI pode acabar em pizza e justificar a gargalhada antecipada pelo filho 01, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ). Resta-nos aguardar os próximos capítulos. Além da Corte de Haia, onde são julgados os crimes contra a humanidade, a conclusão importante será a discussão no plano político às vésperas da eleição presidencial. Decidido que os chineses nada têm a ver com o vírus, acabou claro que, para o presidente da República e apoiadores mais radicais, a culpa do descaso com o surto de Coronavírus deve ser imputada às máscaras, ao álcool em gel e ao recolhimento social. Desdenhar da doença, insistir com medicamentos ineficazes, deixar de comprar vacinas ofertadas no início da pandemia, atrasar a campanha de vacinação e imitar os que não conseguiam respirar foram apenas detalhes. Mais fácil do que assumir erros é ironizar o documento produzido a partir de fatos gerados por quem diz não ter culpa de nada.

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