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Muro das lamentações

Jogo da sucessão estimula mito a insistir no morde e assopra

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Wenceslau Araújo - Foto Marcelo Camargo

A velha máxima de quem desdenha quer comprar voltou a circular esta semana no ninho palaciano. Pela enésima vez, o presidente da República imaginou estar falando para leigos ou fanáticos desplugados da realidade e repetiu estar de saco cheio do cargo para o qual foi eleito em 2018. Claro que não foram essas as palavras usadas por sua excelência, mas a conotação foi exatamente a do transbordamento do fole. No sentido mais ortodoxo, aquele lapidado, como disse Onário, o termo é sinônimo de amofinação, aborrecimento, aperreamento, agastamento, apoquentação ou, na hipótese mais popular, aporrinhação. O lamento presidencial aconteceu na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI), cuja tamanho do PIB me permite afirmar que o público era formado de pessoas inteligentes e capazes de discernir entre a preocupação do não saber e o pavor de perder.

Todos ouviram, compreenderam, sorriram, mas, obviamente, nenhum dos presentes acreditou. Nem as sisudas paredes do templo dos industriais aceitaram a afirmação como confissão honesta. Silenciosamente, a maioria – ou todos – deve ter concordado com as complicações e chatices das funções reservadas a um mandatário. Do alto de minha imprudente imaginação de poder, penso que brigar para ser síndico, prefeito, governador e presidente é algo tão próximo do inconsciente coletivo (a parte abissal da mente humana) que os psicanalistas Sigmund Freud e Carl Gustav Jung jamais ousaram explicar. Psique à parte, também tenho urticárias só de sonhar com a possibilidade. Afinal, preferível a forca a receber, conversar e acarinhar pessoas com as quais mantemos laços de inimizade ou adversidade profundas.

Entretanto, não vou negar que, sonho por sonho, quem nunca se imaginou como uma das milhares de excelências de toga, aquelas com salários e vantagens vitalícios além túmulo. Melhor esquecer essa história da conduta ilibada e do notável saber jurídico, pois incomoda demais os mortais que, como eu, também concluíram um ou mais cursos superiores, de mestrado e doutorado, mas nunca se acharam doutores, muito menos deuses. Voltando ao presidente da República que não gosta do que faz – talvez não saiba –, se o cargo é tão ruim como ele demonstra, qual a razão para mover mundos e fundos para se perpetuar no Palácio do Planalto? Como na letra de Caetano Veloso, ou a minha estúpida retórica está absolutamente ultrapassada ou realmente há algo de estranho nos podres poderes.

Tudo indica que o muro das lamentações do presidente foi chapiscado pela incômoda repetição dos números contidos nos resultados das últimas pesquisas eleitorais. No cenário mais pessimista, o ex-presidente Luiz Inácio ganharia no primeiro e com relativa folga se a eleição fosse hoje. Abominando o cargo, mas sem abandoná-lo, o atual chefe do Executivo ainda é o segundo colocado na disputa, seguido sem muita distância por Sérgio Moro, ex-juiz e ex-ministro da Justiça do governo que ora critica. Aparentemente, Moro deixou de ser surpresa, enquanto Jair Bolsonaro esbarra nas falsas verdades que ele próprio profere. Diante disso, está cada vez mais fácil concluir que as queixas do presidente faz tempo deixaram de ser surpresa para políticos, jornalistas, assessores, seguidores não ideológicos e eleitores atentos.

Em breve, esse pessoal deve pedir a Bolsonaro uma posição oficial sobre sua candidatura. O povo quer saber se é para valer ou apenas para inglês ver ou evitar perdas de simpatizantes para o ex-auxiliar Sérgio Moro. O brasileiro comum precisa de governo, de presidente, de comando e não de medos ou desprezos. Não é desdenhando do que tem que alguém conseguirá a primazia da seriedade. O povo cansou dos discursos dirigidos a fãs, principalmente das falas destinadas a esconder o que é ruim e a tentar recuperar aliados abandonados na sarjeta. Daí, os últimos ataques contra o Supremo Tribunal Federal, contra o passaporte da vacina, contra a CPI da Covid e a favor, por exemplo, do deputado Daniel Silveira, preso por incitamento à violência e à desordem. Estimulado pelos números, o gramado do manjado jogo do morde e assopra começa a ficar sem cor. O risco é chegar a outubro de 2022 com a grama esturricada por absoluta falta de adubo.

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