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Caracol de sonho

‘Mais bela joia da canção rio-platense surgiu burilada verso a verso’

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Não vi a coisa, ouvi o relato. Não sei se é verdade ou se é tudo inventado, pouco importa. Lembro que escutei de um argentino, esqueci o seu nome, que escrevia versos para tangos. Se todo poeta é um fingidor, poetas tangueros, entonces…

Corria o ano de 1956, na cidade de Buenos Aires. O poeta, em seu apartamento, compunha a letra para um tango. Mais um, dos vários que já havia produzido. Havia definido o título, La última curda (O último porre), e a estrutura: um diálogo com o bandoneón, com o instrumento musical mencionado a cada estrofe. Não era muito original, ele reconhecia, mas estava cansado, já eram cinco da matina, bebera com os amigos, los malevos a noite toda. E afinal, era apenas um tango…

Engalfinhou-se com as palavras, levando uma surra delas, até que, ao raiar do dia, um raio de sol atingiu sua vista. Desviou o rosto, contrariado, e escreveu, como num transe:

“Cerrame el ventanal, que arrastra el sol su lento caracol de sueño”

(Fecha a janela, que o sol arrasta e queima seu lento caracol de sonho).

Leu-as repetidas vezes, até a ficha cair.

– Porra, isso é lindo! – exclamou.

Mantendo o nível altíssimo a que fora arremessado pelos deuses, escreveu os versos finais:

“No ves que vengo de um país que está de olvido, siempre gris, tras el álcool?” (Não vês que venho de um país que tudo esquece, sempre obscuro, por causa do álcool?)

Releu esses versos, abriu um sorriso de satisfação, releu o poema inteiro, sacudiu a cabeça desaprovadoramente, e começou a reescrever.

Os muitos bandoneóns sumiram de cada estrofe, restando apenas dois, necessários, perfeitamente encaixados. O poeta permitiu-se ousadias que jamais encarara, tais como a exploração das nuances de significado entre “hondo” e “fondo” e das aliterações entre bajo e barro no mesmo verso:

“Hasta el hondo, bajo fondo donde el barro se subleva”.

E assim, burilado verso a verso, La última curda tornou-se “o” tango, talvez a mais bela joia da canção rio-platense.

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Conto inspirado no tango La última curda

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