O relógio
Máquina de trabalhar, Renato descobre algo melhor a fazer do que comemorar suas vitórias
Publicado
em
Renato, olhos quase cerrados, teve o corpo erguido da cama pela força do horário. Atrasado que estava, arrastou-se até o banheiro, onde lavou os olhos e tentou enxergar o homem refletido à frente. Buscou o sonho que tivera, mas há muito só era visitado por pesadelos.
— Cadê o relatório, Renato?
— Não é possível que você vá querer tirar férias neste ano também, Renato!
— Precisamos fazer outra reunião com aquele cliente, Renato!
— A empresa precisa cortar gastos, Renato!
Tentou abrir os olhos, não reconheceu aquele sujeito. Amanhã seria diferente, mas, hoje, não poderia atrasar. Amanhã. De amanhã, não passava! Ah, não! Não mesmo!
Banho tomado e, já de calça, reteve-se por dois minutos em frente ao guarda-roupa. Camisa azul, gravata sóbria. Sim, isso! Nada daquelas gravatas chamativas, que a esposa lhe dera no último aniversário. Ele gostou do presente, mas, receoso, preferiu mantê-lo ao fundo. Melhor não inventar, ainda mais quando o mercado estava cada vez mais exigente.
Renato, ao tomar o café da manhã, mal percebeu a aproximação da filha. De tão absorto, nem notou quando a criança, caneta à mão, rabiscou algo no pulso do pai. Logo se levantou, abotoou as abotoaduras, vestiu o paletó e saiu.
Aquele dia foi corrido. Duas reuniões, vários contatos com clientes e, já no final do expediente, foi chamado à sala do patrão.
— Parabéns, Renato! Você é o nosso melhor gerente há anos, mas hoje você se superou. Fechamos acordos milionários e, por isso, precisamos comemorar.
Renato se sentiu aliviado, mas algo o incomodava. O patrão continuou.
— E, então, Renato? O que sugere?
— Você que é o chefe, Augusto.
— Hum! Que tal jantarmos no Trattoria?
— Pode ser.
— Vou pedir pro Francisco fazer uma reserva. Que horas são?
Renato olhou para o pulso esquerdo, quando percebeu que havia se esquecido do relógio. Entretanto, no seu lugar, estava um outro relógio, este desenhado com traços infantis. Pego de surpresa, uma lágrima furtiva lhe percorreu a face, ao mesmo tempo em que sorriu.
— Desculpe, Augusto, hoje não vai dar.
— Ué, por quê? Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Acabei de lembrar que tenho um compromisso inadiável com a minha garotinha.
………………
Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
Compre aqui
https://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho
