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Marido, pai e trabalhador exemplar; o ativista político que não entregava ninguém

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Camila Maciel

Hoje com 56 anos – tinha 16 quando o pai morreu – Márcia Fiel conta que, aos poucos, a família foi entendendo o significado da morte de Manoel. “Não sabíamos nada [da atuação política dele]. A única coisa que sabíamos é que ele ia muito ao sindicato”, disse. Ela lembra que, durante o velório e o enterro, agentes da repressão estiveram no local.

“Estavam descendo o corpo e eles em cima da tampa. Enquanto a pedra não cimentou, eles não saíram de cima. Não podia falar nada, abrir a boca”, lembrou. Ao deixar o Cemitério da Quarta Parada, em Água Rasa, na capital paulista, onde o corpo foi enterrado, Márcia, a irmã Aparecida, e a mãe Thereza foram para casas diferentes. “A gente tinha medo que eles voltassem para pegar a gente”, afirmou Márcia.

Certa tranquilidade para a família só veio após verem publicada a notícia de que a morte de Fiel Filho tinha levado ao afastamento do comandante do 2º Exército. “A gente viu a reportagem na televisão. Eu falei: ‘não precisa mais a gente ficar se escondendo, porque já está público o negócio’”, disse Márcia à Agência Brasil.

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Ainda hoje, em uma pasta, Márcia reúne todos os recortes de jornais da época. Segundo ela, ali começava a peregrinação para ver restabelecida a verdade em torno da morte do pai. “Era difícil até para conseguir advogado, porque as pessoas tinham medo de pegar essa ação. Só conseguimos com a ajuda da Cúria [por meio de dom Paulo Evaristo Arns]”.

Impunidade – Passados 40 anos da morte de Manoel Fiel Filho, torturado e assassinado na carceragem do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, impunidade e falta de reconhecimento são ressentimentos presentes na família do metalúrgico. Aparecida Fiel, de 60 anos, filha mais velha, diz que, somente após 20 anos da morte do pai, a mãe Thereza recebeu o valor referente à indenização salarial pela morte do marido. “Não foi uma indenização em que eles reconhecem que mataram o meu pai. Foi cálculo da diferença da aposentadoria”, afirmou. Ela informou que, atualmente, a mãe já não recebe mais o valor complementar, pois o cálculo foi feito até os presumíveis 75 anos de Manoel. “É como se ele trabalhasse até esta idade. Agora a mãe recebe somente a pensão”, explicou.

O pedido de indenização da família, que inclui a revisão do inquérito, com o reconhecimento de que agentes do Estado foram responsáveis pelo assassinato, foi feito em 2006. “Está parado. Há dez anos que aguardamos. Nem sei onde está o processo”, diz Márcia Fiel, filha mais nova do casal. Segundo ela, foi preciso muito esforço, recorrendo a políticos para ver o primeiro processo caminhar na Justiça. Márcia critica o fato de que as perdas ficaram apenas para as vítimas. “Eles [torturadores] viveram muito bem durante todo esse tempo. Qual que é a punição? Tira a aposentadoria deles. Foi o que aconteceu comigo e com a minha mãe. Alguém pensou se a gente ia ter o que comer ou não? Meu pai era o arrimo da família.”

Reconhecimento – A família de Manoel Filho também se ressente por achar que o metalúrgico é pouco lembrado pelo papel que sua morte teve na retomada da democracia no Brasil. “Lembraram do Herzog no ano passado. Quero ver se vão lembrar do meu marido”, disse Thereza Fiel. Para Aparecida, ficou uma mágoa. “Olha quanta coisa que mudou depois do que aconteceu com o meu pai, e nada disso foi divulgado. O estado dele, que é Alagoas, tem muita coisa dele lá, conversei com as pessoas e ninguém sabe da história. Pelo menos de onde ele veio, pensei que soubessem mais”, afirmou.

Para Márcia, a valorização de Fiel Filho veio do segmento operário. “A classe trabalhadora sempre valorizou muito o meu pai. Fizeram muita homenagem, mas, politicamente, essa abertura toda que houve [do processo democrático] depois da morte do meu pai nunca foi valorizada como devia”, avaliou. Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, considera que a história de Fiel Filho também deve ser mais lembrada. “A maior repercussão [do Herzog] foi porque ele era jornalista. Era um homem conhecido nacional e internacionalmente. Ele dava aula na universidade. Toda essa conjuntura fez com que tivesse uma repercussão maior”, disse.

Como fazia todos os dias, Manoel Fiel Filho acordou cedo, banhou-se, tomou café e foi para a Metal Arte, no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, onde trabalhava como prensista. Era uma sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, e, por volta do meio-dia, dois homens, sem qualquer ordem judicial, o retiram do trabalho, vão com ele até a sua residência, na Vila Guarani, revistam a casa em busca de exemplares do jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nada encontram e, sob os olhares apreensivos da mulher, Thereza Fiel, levam o metalúrgico para o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). “Ele me deu um beijo na testa e foi embora. Eu falava: ‘Não leva ele, não”, disse Thereza, ao lembrar que o marido chegou a dizer que voltaria logo. “E ele nunca mais voltou”.

Após o sequestro de Fiel, Thereza reuniu toda a família, incluindo as duas filhas, e peregrinou por várias delegacias de polícia em busca de informações do companheiro. “Um conhecido da Polícia Civil disse que ele estava na Operação Bandeirantes [grupo criado em 1969 pelo Exército, com apoio de empresários para coordenar todas as operações dos órgãos de repressão] e que só se entrava lá com ordem do presidente da República”.

Thereza soube da morte do marido no dia seguinte, sábado, 17 de janeiro de 1976. Por volta das 22h, um carro parou em frente à casa. “Desceu um fulano com um saco de lixo preto na mão”. Ele disse: ‘‘Essa aqui é a roupa dele, e ele está morto’.”

Um bom marido – Um marido trabalhador e amoroso. É assim que Thereza, hoje com 83 anos, relembra Manoel. “Trabalhava na firma e ainda me ajudava em casa. Era bom demais. Atencioso, me ajudava bastante. Adorava as filhas. Marido igual àquele não se acha mais”, disse, emocionada, durante a entrevista concedida à Agência Brasil, em Bragança Paulista, a 90 quilômetros da capital. Thereza relatou, logo no início da conversa com a reportagem, uma coincidência. “Hoje [7 de janeiro] era aniversário dele. São lembranças, né? A gente fazia um bolo. Comemorava em casa mesmo”. As recordações sobre o marido pareciam estar mais vivas naquela manhã.

Manoel, natural de Quebrangulo, Alagoas, terra natal do escritor Graciliano Ramos, festejava os 49 anos. “Eu lembro que fiz um pavê. Ele adorou. Ele não gostava muito de comemorar, mas gostava de estar com família”, disse a filha Márcia. A outra filha, Aparecida Fiel, de 60 anos, também lembrou o zelo do pai em comprar frutas frescas para a filha mais velha, que estava grávida. “Ele não conheceu nenhum neto”.

Manoel saiu de Quebrangulo em 1950 em busca de uma vida melhor em São Paulo. Trabalhou como padeiro e cobrador de ônibus antes de se tornar metalúrgico, exercendo a atividade de prensista na mesma empresa por 19 anos. Embora a família não soubesse, ele era responsável pela difusão do jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro, e pela organização do partido entre os operários das fábricas do bairro da Mooca, conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

A morte do metalúrgico ocorreu menos de três meses após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, no mesmo local e em circunstâncias parecidas, sob a versão oficial de suicídio. Embora não tenha provocado a mesma comoção social que marcou a despedida do jornalista, a morte de Manoel Fiel Filho causou o afastamento do comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, quatro dias depois do assassinato do metalúrgico. “Meu marido morreu e salvou a turma que estava lá [no DOI-Codi]”, disse Thereza, ressaltando que o episódio provocou mudanças no tratamento dado aos presos políticos da época.

Agência Brasil

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