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O tenente da padaria

Máscara cai na visita surpresa da namorada ao rapaz coberto de farinha

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Produção de Francisco Filipino

— Vamos juntos lá, tio, deve ter havido alguma coisa, por isso ele não escreve, não responde… Vamos, se não, eu vou fazer greve de fome!

E Clarinda punha-se a chorar, sentada em sua cama, cabeça encostada no ombro da tia.

O tio, de olhos complacentes, mirava aquela cena, com uma expressão de mais nada a fazer. Agoniava-o o desespero da sobrinha.

Os acontecimentos se passavam na humilde habitação da família, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro, há muitos anos. Numa pequena casa, com a frente ajardinada, moravam Afonso e Célia, com a sobrinha Clarinda, que, órfã pequena, viera preencher a ausência de filhos daquele casal.

Clarinda havia começado a namorar um rapaz, 2.º Tenente do Exército, que conquistara a tia Célia e toda a vizinhança. As mexeriqueiras da rua esticavam os pescoços para fora da janela toda vez que o viam indo em direção da casa da jovem Clarinda, para aquele namorinho de sofá, com direito a xícaras de café e fatias de bolo. E a visita acabava, no máximo, às dez da noite.

Por vezes, vinha domingo de manhã, e acompanhava a família na missa da igreja de São José. Quem por ali passasse, veria aquele grupo, formado pelo casal apaixonado, seguido por tia Célia, não raro de braço dado à Gertrudes, uma vizinha bem idosa que era remotamente sua parenta, e, atrás, de passo lento e olhar atento, o tio Afonso.

Afonso fora o único a quem os sorrisos e mesuras do 2.º Tenente – Aldo era o nome dele – não conquistaram. O velho tinha-lhe sempre o “pé atrás”, como uma vez dissera sua esposa. Por isso, nos eventuais sumiços de Aldo, que de quando em vez se repetiam, não dava corda às demandas da sobrinha, mas o desespero da jovem o consumia.

— Deixa estar, minha filha, ele aparece. Volta e meia ele some, mas sempre volta.

— Não, tio, já são quase onze dias sem notícias. Ele pode ter sofrido um acidente, pode estar doente. Eu não consigo parar de pensar nele. Meu Aldo…

E mais a jovem chorava, de soluçar.

Afonso e Célia entreolharam-se como a dizer, silenciosamente, que algo deveria ser feito.

— Você me dá o endereço certinho dele, minha filha, amanhã o tio vai lá e tira isso a limpo. Em que quartel ele está?

— Não sei, tio. Ele falou vagamente sobre estar na Vila Militar, mas foi transferido. Nas últimas cartas que trocamos, as dele vieram com endereço de Itacolomi.

— Que estranho, ele é do Exército ou da Aeronáutica?*

— Ah, titio!

Ficou acordado que, no dia seguinte, iriam Afonso e Clarinda diligenciar, em Itacolomi, o paradeiro de Aldo. E não houve quem demovesse a jovem da ideia de acompanhar o tio. Nem as recomendações de Célia:

— Mas e se ele estiver doente, minha filha? Fica aqui comigo, o seu tio vai lá e traz as notícias.

— Não, titia. Eu quero ir junto. Não posso mais esperar sem saber. E, se ele estiver doente, quero já fazer algo por ele.

Era ainda cedo, umas 10 horas da manhã, quando a cena descrita se passou. Mas era domingo, e o transporte até as lonjuras de Itacolomi não era fácil. Portanto, a expedição ficou acertada para o dia seguinte, no qual até um táxi se poderia contratar, e mais barato.

Restou à pobre Clarinda ficar sonhando acordada, o resto do dia, com o namorado que não chegava e não dava notícias. Ela se lembrava das vezes em que, debruçada sobre a mureta entre o jardim da casa e a rua, divisava Aldo dobrar a esquina, de farda, vindo em sua direção. Não raro, cumprimentava as senhoras da vizinhança, e fazia qualquer graça com as crianças sentadas, brincando, próximas do meio-fio.

E vinha com garbo e elegância, encher de luz e contentamento o sorriso da namorada.

Invariavelmente tomava sua mão ao chegar perto, beijava-a delicadamente, e dizia o quanto ficara com saudades.

Entravam e deixavam-se ficar na sala, naquele idílio, mas sempre em companhia de Afonso, ou de Célia. Até a velha Gertrudes, eventualmente, vinha acompanhá-los.

Célia servia-lhe café, bolo e, quando vinha aos domingos, ficava para almoçar.

Afonso, apesar do comportamento generoso da esposa e da sobrinha para com o tal 2.º Tenente, olhava-o de esguelha, de um jeito meio desabrido. Fixava-se bem nos detalhes. O bigodinho fino e louro, os traços de bilontra. Dava-lhe o benefício da dúvida, mas tinha, como sempre, o “pé atrás”. Era-lhe inevitável.

A noite passou por sobre o Engenho de Dentro e, na segunda-feira bem cedo, Clarinda, com a toillete impecável, já esperava o tio terminar de tomar o desjejum para saírem. Ansiosa, apertava as mãos e, instintivamente, rezava. Ficara na esperança de uma visita inesperada, da chegada de notícias, ou mesmo de resposta ao telegrama que pusera nos Correios na quinta-feira anterior, à tardinha. Mas nada… E a busca por Aldo em Itacolomi se revelava o último recurso.

A dupla saiu de casa e, próximo da estação de trem, contrataram um táxi a preço certo. Partiram em direção à Ilha do Governador e, antes das dez horas da manhã, lá já se encontravam, em demanda do endereço gravado no envelope da mais recente carta.

Clarinda nunca tivera informações precisas sobre a vida do namorado. Sabia que, quando ele não estava no quartel, ficava na casa de uma tia-avó que o criara e a quem muito ajudava. Tinha orgulho do valor que Aldo dava à família, pois assim provava ser bom rapaz.

No endereço, entretanto, não encontraram casa de família, mas uma padaria. Afonso, curioso, checou duas vezes para saber se não se enganava e, deixando a sobrinha no táxi, entrou no estabelecimento, perguntando ao homem no balcão:

— Bom dia, cavalheiro. O senhor conhece o 2.º Tenente Aldo?

Com carregado sotaque lusíada, o homem respondeu-lhe:

— 2.º Tenente? Não conheço. Como o senhor disse que ele se chama?

— Aldo.

— Ah, ora pois, o Aldo. Sim, este eu conheço. Quer que vá chamá-lo?

— Por favor.

O português gritou aquele nome e, dos fundos da padaria, apareceu o rapaz. Não envergava nenhuma farda do Exército, mas vinha de gorro e avental, todo sujo de farinha.

— Mas o que é isso? Clarinda, corra aqui, chamou o tio.

A dupla, atônita, olhava o 2.º Tenente tornado padeiro. Mais chocado ainda parecia Aldo, descoberto em sua farsa. Mas Clarinda nem lhe deu tempo de reação e, atirando-se ao seu pescoço com os longos braços e beijando-lhe as faces empoadas de trigo, caiu em prantos, agradecendo à Virgem Maria por encontrá-lo vivo e com saúde.

Afonso olhava a inimaginável cena, também não compreendida pelo português que se conservava no balcão.

Após alguns minutos de conversa, tudo ia se esclarecendo. Aldo era oficial… padeiro. Aprendera o ofício na época em que servira como soldado. Não era tenente coisa nenhuma e empregara-se naquela padaria ao terminar o seu período no Exército. Morava numa casinha próxima, com a tia-avó de quem falara. Inventara aquele romance todo para poder impressionar a namorada, pois se envergonhava de suas humílimas origens.

Internamente, Afonso gozava seu triunfo. No fundo, desconfiava de algo, e agora confirmava seu pressentimento. Aquele 2.º Tenente nunca lhe enganara.

Contudo, a opinião importante era a de Clarinda. E, após ouvir a confissão do namorado, disse que não se importava, e que estava tudo bem. Não ficara aborrecida, pois gostava mesmo dele, sem se preocupar com a profissão que exercia. O melhor de tudo é que ele estava ali, justificando a falta de notícias e de visitas por causa do estado de saúde da tia-avó que, ultimamente, andava preocupante.

Mas foi aí que a dupla surpreendeu-se com a resposta do farsante.

— Ah, mas agora quem não te quer mais sou eu. Fiquei aborrecido com esta sua visita, viu? Assim de chofre, sem avisar… Eu queria ser seu namorado quando era tenente. Namorar você sendo padeiro, sinto muito, Clarinda, mas não me serve. Não me serve. E está tudo acabado entre nós.

(*) – A Base Aérea do Galeão, da Aeronáutica, foi instalada no bairro carioca da Ilha do Governador, em 1941. Tinha o nome de Itacolomi uma localidade próxima, desaparecida nos anos de 1960 para a construção do aeroporto internacional do Galeão, hoje chamado “Tom Jobim” N. do A.

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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