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Lágrimas na partida

Meioca, a cachorra que me acompanhou por anos

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Minha avó chegou carregando uma caixa de sapatos. Pela aparência gasta, imaginei que receberia mais um novo velho par de algum primo, já que eu havia nascido com a sina dos mais novos: herdar roupas e calçados que já não serviam nos maiores.

Ela me estendeu a caixa, que peguei provavelmente com um sorriso forçado nos lábios. No entanto, logo percebi que algo se mexia ali dentro. Curioso que era, tratei logo de tirar a tampa e me deparei com uma linda cadelinha quase toda marrom, caso não fosse por aquelas manchas nas patas, que pareciam luvas e meias.

Não me contive e a peguei no colo e encostamos nariz com nariz. O dela era de um geladinho, que, a princípio, me reportou aos cubos de gelo que mamãe adorava mastigar. Entretanto, quase ao mesmo tempo, senti aquele cheiro, verdadeiro fetiche que os filhotes de cachorro despertam até mesmo no mais insensível coração de nós, meros humanos.

Minha tia Doroteia se aproximou e me perguntou que nome eu daria para a minha cachorrinha. Pipocaram sugestões de todas as bocas presentes: Princesa, Luna, Diana, Safira… Até que minha avó, do alto da sua perspicácia, tocou os pés da minha, a partir daquele momento, maior companheira. Não tive dúvida e balbuciei, quase ao mesmo tempo em que os lábios da minha avó se mexiam: Meioca.

– Meioca? Que nome esquisito! – disse tia Doroteia.

– Meioca, sim! Se o Gustavinho escolheu, tá escolhido! – minha vó falou e, logo, todos entenderam que estava falado.

Dos meus 8 aos 21, Meioca e eu passamos a maior parte do tempo juntos. É verdade que, assim que passei no vestibular, nossas brincadeiras se tornaram menos frequentes, mesmo porque fui morar na cidade vizinha. Mas, sempre que voltava para casa, íamos ao lago nos refrescar. E, nos seus últimos meses de vida, eu a carregava no colo e sentávamos debaixo de uma mangueira, cujas raízes tocavam as margens, como se dedos fossem.

Meioca já não possuía aquele vigor, mas seus olhos, apesar de cada vez mais tomados pela catarata, continuavam a me acompanhar, como se me protegendo de algo enquanto eu dava um mergulho. Era nítido seu alívio quando eu retornava para seu lado, tamanha sua euforia. Dividíamos um sanduíche de carne, até que a tarde se esvaía e eu tomava minha amiga nos braços e retornávamos para casa, onde nos esparramávamos no sofá e devorávamos uma bacia cheia de pipoca, enquanto assistíamos a mais um programa sobre a vida selvagem.

Não sei se a Meioca entendia o que era aquele monte de animais na televisão, mas sempre se mostrou muito interessada, especialmente quando surgia algum lobo. Talvez ela soubesse que aquele animal, muito maior do que a minha amiga, possuía uma ligação forte com a sua existência.

Outros bichos que faziam os olhos de Meioca brilharem eram tigres, leões, onças e leopardos. Ela chegava a se erguer, orelhas voltadas para a tela. Mamãe, quando notava esses momentos, falava sempre a mesma frase: “Meioca, essas feras podem devorá-la!” Minha cadela encarava minha mãe, como se dissesse: “Que nada! São apenas gatos!”

Foi no outono de 1982, quando Meioca fechou os olhos pela última vez. Minha mãe chorou por nós dois, já que eu só fiquei sabendo no final de semana, quando cheguei à nossa casa. Estava na faculdade e, antes de eu abrir o portão, percebi que algo estava diferente. Meioca não me esperava na varanda, como sempre. Também notei um pequeno monte de terra debaixo da goiabeira próxima ao muro. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, e inúmeras outras fizeram o mesmo caminho.

Naquele dia, prometi que jamais teria outro cachorro, tamanha a dor que senti e que me acompanha desde então. Quase duas décadas após, resisti aos apelos dos meus filhos, que tanto me imploraram por um cãozinho. Mantive-me firme até a semana passada, quando minha primeira neta veio até mim: “Vovô, o papai não quer me dar um cachorro. O senhor me dá?”

Pois é, eis que aqui estou, perto de completar 60 primaveras, com essa caixa na mão, onde uma criatura peluda não para de abanar o rabo. Minha neta vai ter uma surpresa daquelas e, tenho certeza, terá um companheiro inseparável por um bom tempo.

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