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A nova ordem do dia

Moro, antes anjo, vira demônio no paredão político

Publicado

Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Em alerta máximo por conta das variantes da Covid-19, o Brasil, a saúde e a política alcançaram níveis críticos nesses últimos dias. Estão a dois passos das portas da UTI. E, considerando a falta de planejamento do governo e as prioridades do Congresso e do Judiciário, de lá dificilmente sairão sem a ajuda dos deuses, dos orixás ou de Joe Biden, como sugerem alguns governadores. Com os recordes diários, conseguimos a proeza de ultrapassar os Estados Unidos em número de mortes a cada 24 horas. Paralelamente, os hospitais públicos e privados estão saturados, não temos vacinas para imunizar o povo, não sabemos quando teremos, as famílias estão empobrecendo, o cidadão não tem mais emprego, consequentemente renda, o Legislativo bate cabeça para aprovar um novo auxílio emergencial e o Supremo Tribunal Federal se reúne às pressas para julgar uma habeas corpus suspenso desde 2018.

Em meio a todo esse pandemônio da pandemia decorrente do coronavírus, Luiz Inácio Lula da Silva foi absolvido na Lava Jato e devolvido aos gramados eleitorais. E qual a simetria? Nenhuma relacionada ao vírus, mas tudo a ver com o novo cenário político do país. Na ordem do dia, muitos discursos, poucas propostas concretas para conter a letalidade da doença, mas uma determinação comum aos três vértices do poder. De repente, Executivo, Legislativo, Judiciário e parte da imprensa fecharam questão em torno do abate de uma personagem que até bem pouco tempo era considerada como um dos bastiões da moralidade brasileira. Na verdade, a tentativa de enterrar Sérgio Moro vivo não é recente, mas ferveu no mesmo dia em que o VAR da Suprema Corte decidiu que o juiz que condenou Lula à prisão não era o magistrado ideal para a peleja.

Definitivamente o Brasil não é para amadores. Longe de mim creditar culpas a quem quer que seja. Entretanto, o STF optou por jogar a Lava Jato na lata do lixo quase três anos depois da prisão de ex-presidentes da República e da Câmara dos Deputados, de ex-ministros de Estado, deputados, senadores e executivos da Petrobras, todos supostamente envolvidos em esquemas de corrupção. De lá para cá, a principal figura da operação transformou-se, em pouco mais de 24 horas, no único emparedado do país. Inocentado e devolvido à disputa presidencial por uma canetada do ministro do STF Edson Fachin, Lula da Silva certamente assistiu de camarote à derrocada e ao apedrejamento do ex-juiz Sérgio Moro, o mesmo que até bem pouco tempo era ovacionado como exemplo de honestidade e reconhecido nas ruas como símbolo de lisura, integridade e probidade.

Passou de anjo a demônio e não foi ouvido nesses dois últimos dias sequer para contar sobre seu crime. Sem entrar no mérito dos vazamentos das conversas atribuídas a Moro e a procuradores da Lava Jato, o que se depreende de todo esse episódio é que um Sérgio Moro incomoda muita gente. Um Sérgio Moro e um Deltan Dallagnol incomodam muito mais. Apenas um dia após Fachin ter anulado as condenações de Lula e isentado da culpa de parcialidade o ex-juiz, o silêncio do Palácio do Planalto e a movimentação no STF, no Congresso e na imprensa monotemática deixou claro que o homem a ser combatido tem nome e sobrenome e, de currículo, passou a ter folha corrida. Essa afirmação ficou nítida no voto do presidente da Segunda Turma do STF, ministro Gilmar Mendes, que reconheceu a parcialidade do ex-ministro da Justiça na condenação e prisão de Lula no caso do triplex do Guarujá e creditou a Moro a responsabilidade “pela maior crise que já se abateu sobre a Justiça Federal”.

A verborragia dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski é justificável. Um é adversário histórico e mais consistente da Lava Jato, cabendo ao outro o honroso elogio de amigo da cozinha do ex-presidente da República. Como a maioria é devedora da operação que tentou passar o país a limpo, também não gerou estranheza alguma os congressistas torcerem contra o ex-ministro da Justiça. Estranho mesmo foi a forma como a Rede Globo cobriu o julgamento inconcluso da Segunda Turma. A leitura praticamente literal dos votos de Mendes e Lewandowski quase impediu o noticiário da pandemia, hoje carro chefe da programação da emissora da família Marinho. Os crescentes e macabros números da Covid-19 não preencheram sequer um bloco do Jornal Nacional, cujos editores e apresentadores também ignoraram a máxima do bom jornalismo, que é tentar ouvir a parte atacada.

Não escrevo com objetivo de inocentar ou condenar Lula, tampouco de inocentar Sérgio Moro. O que não entendo é a quem interessa o emparedamento compulsivo de um ex-magistrado cujo crime, além de supostamente ter agido com parcialidade, foi aceitar o convite de Jair Bolsonaro para ser ministro da Justiça. Do foguetório, da idolatria temporária e das faixas de saudação, o Brasil e determinados brasileiros esqueceram, com a rapidez de um raio, a importância da maior operação contra corrupção que o Brasil já experimentou. O desfecho do caso, independentemente da decisão do ministro Edson Fachin, que anulou parte dos processos e devolveu Lula ao cenário eleitoral, parece encaminhar para o sepultamento definitivo da Lava Jato. O voto de Gilmar Mendes reconhecendo a parcialidade pode não ter sido a pá de cal, mas certamente terá efeito devastador no futuro político de Moro.

Na verdade, até os escombros das duas torres gêmeas de Manhattan tinham conhecimento antecipado do resultado do julgamento de Sérgio Moro na Segunda Turma do STF. Por enquanto, são dois votos a favor e dois contrários ao ex-juiz. Pelo calor dos bastidores da Suprema Corte, poucos acreditam que o voto vista do ministro Nunes Marques será no caminho inverso às posições de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, ambos convictos das falhas do ex-juiz na conclusão do processo contra o ex-presidente da República. Como sempre há o lado bom nas notícias ruins, os efeitos Lula e Moro transformaram o presidente Jair Bolsonaro.

Negacionista compulsivo da Covid-19, o presidente anunciou a compra de milhões de vacinas, afirmou que irá se vacinar, mostrou a mãe sendo imunizada e certamente tomará novas medidas populistas. Afinal, está chegando a hora de a onça beber água. Em 2022, sem o juiz chamado de ladrão e com Lula sem a pecha de demônio, Bolsonaro sabe que enfrentará um candidato vitimizado e à sua altura. Por isso, o discurso amedrontado de que não está preocupado com a uva (Lula), sob o argumento de que ela ainda está verde. Obviamente está verde porque ele não pode alcançá-la. Quanto a Moro, o ex-juiz hoje é apenas um detalhe, embora nos ajude a consolidar a máxima de que política e futebol só servem para fomentar a discórdia entre seres humanos. No entanto, esse ou aquele lado não deve esquecer que até hoje (10) a Covid-19 soma no Brasil 11.122.429 de infectados e 268.370 mortos.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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