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Que país é esse?

Mortos de frio e mortos de bala viram marca registrada no Brasil

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Autor/Imagem:
Marina Amaral Diretora Executiva - Agência Pública Jornalismo Investigativo/Foto de Arquivo

Em novo episódio de temperaturas extremas – desta vez, uma onda de frio no Centro-Sul -, São Paulo mostrou sua face mais cruel. Da Justiça partiu uma ordem de reintegração de posse de um prédio em reforma na rua Augusta que jogou na rua, com temperatura mínima de 6 graus, cerca de 100 famílias – 79 crianças – expulsas em operação da Polícia Militar. Por sua vez, a prefeitura deixou ao relento moradores de rua em quadro de hipotermia; um deles, de 66 anos, morreu de frio na fila de um abrigo. Outro homem foi encontrado morto em Mauá, região metropolitana de São Paulo. Na semana passada, um morador de rua já havia morrido, este baleado em uma operação policial para empurrar a chamada cracolândia – o espaço miserável de consumo e venda de drogas do centro paulistano – de um quarteirão para outro. Agora eles vagam pelas ruas nas madrugadas geladas.

Na cidade mais rica do Brasil, castigada pelo desemprego e pela desesperança, precisamos das lágrimas do padre Júlio Lancelotti, que há uma vida se dedica a proteger os mais fustigados pela desigualdade e não se blindou contra a dor, para nos lembrar da nossa desumanidade em progresso. A indiferença torna a impotência maior.

Do outro lado do país, em Altamira, Pará, doze pessoas foram assassinadas nos últimos 10 dias. O município do tamanho de Portugal, à beira do rio Xingu, foi vítima dos sonhos de grandeza dos militares – com a Transamazônica, que teve sua construção anunciada em Altamira, em 1970, pelo general Ernesto Geisel – aos governos petistas, com a trágica construção da Usina de Belo Monte (2010-2016). Indígenas e ribeirinhos foram arrancados abruptamente não apenas de suas terras, mas de suas identidades, o que resultou em uma transfiguração brutal do agora inchado município paraense. A criminalidade, o suicídio de jovens, os traumas psicológicos dos mais velhos, a miséria na infância e a fome se multiplicaram a níveis estratoféricos nos anos seguintes, como explicou a jornalista Eliane Brum, radicada na cidade, no podcast O Assunto, de Renata Lo Prete.

No governo Bolsonaro, o nocivo mito do progresso ganhou uma camada de cinismo, que incentiva e absolve os criminosos, e o ódio pelos que vivem nas regiões vulnerabilizadas por crimes socioambientais se espalhou como fogo na floresta. Em 2021, os assassinatos por conflitos no campo bateram recorde, segundo os números da CPT, que também apontam como agressores fazendeiros, empresários, grileiros, agentes do governo federal, mineradoras internacionais e garimpeiros. Mais da metade das ocorrências (53%) foram na Amazônia, região que, não por coincidência, sofre uma alta galopante de desmatamento.

Agora, sinais de violência reacenderam em outra região já traumatizada por crimes anteriores e também impactada pela Usina de Belo Monte. Trata-se de Anapu, a 110 km de Altamira, localidade que ficou internacionalmente conhecida pelo assassinato da freira americana Dorothy Stang, em 2005. Sem nunca terem vivido a paz, comunidades ribeirinhas mais uma vez estão à voltas com a violência. No último dia 11, dez pistoleiros encapuzados e fortemente armados invadiram a comunidade do lote 96 da Gleba Bacajá, expulsaram famílias e as mantiveram sob a mira de armas enquanto tentavam retirar seus pertences. Duas casas foram incendiadas. Os agressores são ligados a “fazendeiros” da região, instalados em terras públicas, como ocorre desde o tempo de Dorothy.

Se não se pode esperar nada além do agravamento da pobreza e da exclusão da sociedade do debate público em um eventual novo governo Bolsonaro, se quisermos ter futuro teremos que fazer mais do que eleger outro presidente. “Progresso” e pseudo desenvolvimento não vão nos tirar da grave situação em que estamos. A resposta passa por ouvir os que arriscam suas vidas para salvar a floresta e os que dividem o pouco que têm com os que têm menos ainda nos barracos pobres nas periferias.

Precisamos chorar sem nos deixar paralisar, como ensina a solidariedade do padre Júlio, para voltar a ser humanos, ao menos mais humanos do que éramos quando permitimos a expulsão das comunidades do Xingu. E, certamente, bem mais humanos do que quando permitimos que Jair Bolsonaro chegasse ao poder.

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