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O método

Na vida cheia de atalhos, loucura soa como liberdade

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Autor/Imagem:
Emanuelle Nascimento - Foto Francisco Filipino

A senhora da fila do pão falava sozinha. Uma palavra aqui, outra ali, sorrisos entre frases desconexas. Parecia em outro mundo ou talvez no mesmo mundo que a gente, mas com outro filtro, outro idioma, outro ponto de vista.

“Doida”, cochicharam atrás de mim.

Balancei a cabeça com um certo orgulho. Aquela mulher era livre. E, se a liberdade é loucura, então talvez eu também precise enlouquecer um pouco mais.

Na universidade, me ensinaram que a loucura é uma construção social. Foucault gritava das páginas amareladas: “A loucura é aquilo que o poder não suporta escutar!”

E quem mais grita do que as mulheres que foram caladas a vida inteira?

Chamar de louca sempre foi um atalho.

É mais fácil dizer “ela é instável” do que admitir que ela está exausta.

É mais aceitável dizer “ela surtou” do que reconhecer que ela foi ignorada por anos a fio, tentando manter uma sanidade que ninguém ajudava a segurar.

Já percebeu que homem bravo é “assertivo”, mas mulher brava é “descompensada”?

Pois é. O hospício é mais perto para umas do que para outros.

Quando estive na beira do abismo e estive, não por opção, mas por circunstância descobri que a loucura, muitas vezes, é um abrigo. Um protesto íntimo. Uma última forma de dizer: me escutem.

E se ser louca for a única forma de não ser invisível?

Na antropologia, aprendemos a escutar os desvios. As falas marginais. As linguagens não ditas. E é na “loucura” que muitas vezes mora a denúncia mais sincera de uma sociedade em ruínas.

Uma mulher que quebra pratos talvez esteja gritando pelo amor que nunca recebeu.

Uma mãe que abandona tudo e vai morar sozinha talvez esteja tentando sobreviver.

Uma professora que chora no banheiro da escola talvez esteja segurando o mundo inteiro nas costas e ninguém viu.

Louca, pra quem?

Porque quem se diz normal costuma esconder muito bem suas rachaduras.

Já me disseram que minha sensibilidade me atrapalha. Que pensar demais é perigoso. Que escrever sobre dor afasta os leitores. Discordo.

A dor é uma casa com as portas abertas. E às vezes é lá que a gente encontra quem também tá tentando sobreviver.

Não quero mais fingir estabilidade. Não quero mais parecer feliz em reuniões sociais. Quero o direito de ser caótica, contraditória, cheia de perguntas.

Porque ser “louca”, pra mim, é ter método. Um método de resistência, de linguagem, de protesto e de poesia.

E se você leu essa crônica até o fim, talvez também esteja do lado de cá da fila do pão. Onde a gente não finge, não silencia, não engole.

Onde a gente vive, mesmo que do nosso jeito. Mesmo que digam que é loucura.

Afinal, tudo depende do ponto de vista.

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