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Doce por inteiro

Ney Matogrosso, quem diria, é mestre na arte de labutar

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Mesmo que tenha a perda com melancólico e triste fim, as histórias envolvendo avós são sempre muito saborosas. Inspirado na escorreita inspiração do nobre amigo e parceiro de site Eduardo Martinez, minha avó e eu também inclui os Secos & Molhados, mais especificamente o meu, o seu, o nosso Ney Matogrosso. Menos carinhoso e muito mais dramático, meu causo com minha vozinha Charrua (indígenas nativos do Uruguai) precisou do reforço dos amigos mais próximos.

Em 1970, já moço feito, comecei a dar meus pulinhos sobre os muros sem reboco das vizinhas mal sapateadas. Vem daí a alcunha com a qual dona Ciriaca (a avó) adorava me chamar quando dos colóquios com as similares do pedaço. Não era desagradável, mas eu me preocupava com a possibilidade de o apelido ser considerado propaganda enganosa. E não era.

“Magricela, cabeludo e com os dentes encavalados, mas de reconhecida protuberância, esse meu neto parece que tem o pinto doce. É uma namorada em cada esquina. Às vezes, acho que ele lambuza esse trem no mel para chamar as abelhas”.

Embora bem mais mentiroso do que o amigo e catedrático Eduardo, me limitava a solfejar no ouvido da adorável velhinha: Menos, vó, menos.

Mas o que tem Ney Matogrosso a ver com a narrativa? Tudo. Em 1973, ainda com o perfil descrito acima, fui “apresentado” a José Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias. Ao lado de Ney, eles formaram, por apenas dois anos, a banda que mexeria com a cabeça da rapaziada. O álbum de estreia, com a icônica capa mostrando os rostos dos quatro integrantes do Secos&Molhados servidos em bandejas, foi uma das principais imagens do imaginário dos fãs de rock dos anos 70.

Faixa de abertura do disco, um fenômeno de vendas para o período de censura plena e de ditadura absoluta, a música Sangue Latino, que completa 51 anos em agosto próximo, acabou se transformando no início de meu calvário com a vó. O show do grupo no Maracanãzinho, em 1974, foi o divisor de águas. Eu era uma das 30 mil pessoas que se acotovelaram para acompanhar os trejeitos de Ney cantando Sangue Latino e O Vira.

Nada de baitolagem congênita ou uterina, mas naquele momento descobri que havia sido sem nunca ter sido. É claro que já tinha experimentado (e gostado) a Rosa de Hiroshima, graças à primeira lição da cartilha de meu vô portuga: “Eu vi a uva e, como estava perto, também vi a vulva”.

Após “prechecar” o significado da frase, tomei um gosto absurdo pela coisa. Apesar disso, a partir do show, encasquetei com uma tese juvenil que era tabu para a época. Meu lado Tonhão, o do pinto doce, me empurrava para João Ricardo e Gerson Conrad. O problema era o lado frozô, cuja queda para o então namoradinho do Brasil me criou sérios entreveros familiares. Como dizer para dona vó que aquilo era só uma performance? “O cacho”, respondia a enfezada mãe do pai.

Antes que pensem mal, nunca tive dúvida de minha masculinidade. Na verdade, não tenho. Entretanto, sinto arrepios só de lembrar da tentativa de copiar os meneios e rodopios escamoteados de Ney Matogrosso. Em uma das vezes, quase dei um nó nas tripas. No português claro, por pouco não me sodomizei. Perdão pelo termo, mas ali percebi definitivamente que minha lateral mulher é lésbica.

Graças a Deus, cresci sem a necessidade de me identificar como Tonhão, o hétero. Os que me conhecem duvidam à primeira vista, mas na segunda têm certeza de que qualquer deslize é parte de uma estratégia bem mais profunda. Por essa razão, muitos deles já me recomendaram às casas obscuras e escuras do santo grau explícito. Aos que não me conhecem, prefiro deixar que eles mesmos descubram.

É como fazia o amigo de infância Belini Brasilino. Cabeleireiro diplomado pelo Senac e acumulador de milhas marítimas desde os idos de Fuzileiro Naval, ele cortava dos dois lados. Obviamente que essa era a estratégia. Aos homens, oferecia meia cabeleira. Às mulheres, principalmente às incautas, notárias e notívagas, era o célebre corta atrás e picota na frente. A cada tesourada, mais um corno no bairro.

Belini tentou me ensinar o ofício, mas, também escolado na arte da enganação, normalmente preferia algo menos perigoso. Morria de medo de ser surpreendido no recesso de um doce lar e aí, sem dó e nem piedade, ter de me ajoelhar para cumprir o ritual da Cornolandia: doar o caneco para continuar vivo. Como o melhor da vida é vivê-la sem pressa, minha vozinha querida partiu bem depois dos meus inventados 13 filhos, sete mulheres e seis homens. Convencida pelos amigos e vizinhos, dona Ciriaca foi-se com a certeza de que o neto era doce por inteiro.

Ainda que não seja supersticioso, Ney Matogrosso tem 13 letras. Por conseguinte, parafraseando o Velho Lobo Zagallo, mesmo com o tal do pimpolho doce meio bambo, vocês vão ter de me engolir. Ou seja, com ou sem Secos & Molhados, Ney me ajudou a consolidar a prática de labutar. Não esqueçam de que, ao contrário do Eduardo Martinez, sou mentiroso. Embora pródigo de juramentos, meu castigo é não ser acreditado nem quando falo a verdade.

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