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2020, o ano que não existiu

No carnaval das ilusões, ovos no cuscuz do povo

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Armando Cardoso* - Especial para Notibras

Arrrrreeeeeppppiiiiiiaaaa, capitão!! Se seguuuuuuuuuura, povão brasileiro! Aqueçam o chope, congelem o churrasco e sapequem os petiscos, pois, mesmo sem ziriguidum ou paticumbum, começou o carnaval, o carnaval das ilusões, coincidentemente um dia após a abertura do Ano Novo chinês. Nada combinado entre Bolsonaro e Xi Jinping. Antecipando o resultado do primeiro dia de desfiles imaginários, é “dez”, nota “dez” para o governo federal nos quesitos agilidade no combate à Covid-19, evolução dos ministros, voracidade do Centrão, alegorias e adereços do Congresso, rapidez da imunização de Eduardo Pazuello e insensatez do rebanhão.

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No Vivódromo em que se transformou a corrida pela vida, já estão perfiladas as agremiações da moda: Engole o choro e esqueça os mortos da Covid-19, A PQP é logo ali, Turma de maricas, Unidos pela cloroquina, Salvos pela hidroxicloroquina, Voto impresso a qualquer custo, Gripezinha matadora e, representando os jornalistas do país, Imprensa canalha e Filhos da pauta. Sem almejar premiação. Hours concours do carnaval de Brasília, este ano o desfile mais esperado é o do bloco Só ovos no cuscuz do povo. Em 2020, o ano que não existiu, e nesse início de 2021, o Brasil e os brasileiros levaram fumo à exaustão. Por isso, mantêm o trauma do medo. Perderam o chão e o rebolado, mas mantiveram o que ainda conseguem exportar gratuitamente: a alegria

A pandemia do novo coronavírus – a essa altura ele já está pra lá de velho – começou em Wuham, na China, pulverizou Donald Trump nos Estados Unidos, deixou em pé os cabelos do conservador Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, impediu a realização das Olimpíadas de Tóquio, fulanizou o futebol em todo mundo, virou resfriado em Brasília, experimentou a primeira vacina em São Paulo e, quem diria, terminou no Irajá, Pilares, Del Castilho, Tijuca, Madureira, Vila Isabel, Padre Miguel, Mangueira, Niterói e Nilópolis, bairros suburbanos e municípios tradicionais do samba fluminense. Após quatro anos de tentativas frustradas, Marcelo Crivella, voluntária ou involuntariamente, conseguiu implodir o carnaval da cidade que um dia foi maravilhosa.

Crivella perdeu o reinado, mas deve estar com os joelhos ralados de tanta oração no Templo da Glória do Novo Israel, base estadual da Igreja Universal, localizada justamente entre Irajá, Del Castilho e Pilares, respectivamente sedes do bloco Boêmios do Irajá e da Escola de Samba Caprichosos de Pilares. Como temos de nos apegar a todos os santos e orixás contra a Covid-19, dizer que a folia terminou no Irajá não é apenas uma metáfora sem nexo. É uma tentativa de mostrar a determinados religiosos que a festa não tem qualquer viés religiosos, isto é, não é de Jesus Cristo ou de seus apóstolos, do Satanás ou de seus representantes do candomblé e da umbanda, tampouco do kardecismo.

De acordo com a definição oficial, carnaval é um festival do cristianismo ocidental, combinando elementos circenses e máscaras, que ocorre antes da estação litúrgica da Quaresma. Presente em países historicamente luteranos e em regiões com alta concentração de anglicanos e metodistas, a folia pode perfeitamente ser ecumênica. Prova disso é que a quadra do Boêmios de Irajá, originalmente bloco do compositor Beto Sem Braço e do passista Humberto Perneta, fica na esquina das avenidas Pastor Martin Luther King Junior e Monsenhor Félix. Portanto, “…De pluma, de ouro, de prata ou de lata, as coroas têm as suas tradições. O rei mandou vadiar, o rei mandou sambar no carnaval das ilusões…” É o que farei, mesmo dentro de casa.

Pretendo seguir à risca os versos de Hilton Veneno e Mazinho da Piedade, compositores do samba enredo da Portela em 1983, e rosetar conforme estabelece a pandemia que enfrentamos há quase um ano. Aliás, a Covid-19 não escancarou apenas a fixação do presidente da República pela reeleição. Para aliviar as tensões do sonolento noticiário político-viral, também deixou claro que em 2021 não teremos somente um carnaval de ilusões, mas de desamores, incômodas negociações e, infelizmente, de violência gratuita contra o eleitor. Na aplicação mais correta do provérbio quem não tem cão caça com gato, o reisado de Momo deste ano será a festa da criatividade, capacidade que, repito, o brasileiro de qualquer idade tem para exportar.

A lógica proibição de aglomerações dará lugar a ideias e invenções caseiras. O gosto de limão amargo do vírus certamente será substituído por uma gelada e açucarada limonada. Definitivamente a folia não será igual àquela que passou. Ninguém vai brincar fantasiado ou travestido, mas, na tarde de Quarta-Feira de Cinzas, a imaginação fluirá como nunca. Na verdade, os três (que são quatro) dias de folia serão iguais a todos os que conseguimos viver saudavelmente desde o início de 2020. Perdemos as contas dos feriados. Em todo o calendário parece que só existem sábados e domingos. Os dias começam muito tarde, enquanto as noites terminam quase de manhã. Por muito tempo os bares não abriram, mas aprendemos a beber com as mãos e receber drinks delivery.

Assunto proibido em qualquer família constituída, o encontro com os amigos para o futebol no boteco às quartas-feiras e domingos ficou para quando Deus quiser. Tarefa odiada pela maioria dos homens, visitar supermercados, padarias, sacolões e tendinhas virou passeio diário. Não era incomum um ser humano comum cumprir esse afazer de duas a três vezes por dia. Virou um biscate sem remuneração. Antes exercido sob protesto público, o labor doméstico – louças, banheiros e vidraças – transformou-se em encantador ofício. Tenho amigos que compraram agendas somente para anotar a quantidade de pratos, copos, facas, garfos e colheres lavador por dia.

Mas e o carnaval? Este ano, os cariocas, pernambucanos e baianos, por exemplo, experimentarão uma situação inédita nesse período: serão cidadãos comuns, iguais aos brasileiros de todos os demais 23 estados e o Distrito Federal. Eles não terão o privilégio de acompanhar o quilométrico Cordão do Bola Preta. Fundado em 1918, é o mais antigo bloco carnavalesco do Rio, um dos mais antigos do país e último representante remanescente dos antigos cordões carnavalescos que existiam no Rio de Janeiro no início do século 20 cariocas. Nos sábados de carnaval, o Bola Preta costuma reunir mais de um milhão de pessoas na Avenida Rio Branco e demais ruas do centro da cidade.

Seus similares em tamanho, antiguidade e alegria são o bloco pernambucano Galo da Madrugada e os trios elétricos da Bahia. Um dos mais novos blocos dos cariocas é o Sargento Pimenta, fundado em 2010, que desfila no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio. O nome é uma referência ao álbum Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band e o repertório é formado principalmente por versões de canções dos Beatles, interpretadas com arranjos de samba, marcha e maracatu. A rotineira inspiração do povo já começou a surgir.

As agremiações para o segundo desfile imaginário já estão se posicionando para entrada no Vivódromo. Prometendo exorcizar a pandemia, os blocos Meu Espirro é alergia, Largo do machado, mas não largo da máscara, Dissidentes do Mandetta, Sargento Covid, Cordão da OMS, Vem ni mim que eu tô negativa, Pierrot e cloroquina, Isola que eu gamo, Bagunça meu corona, Banda da quarentena, Álcool gel é quase amor, Assintomáticos do Planalto, Concentra, mas não sai de casa e a Trupe do Jair não têm enredo, mas prometem evoluções típicas do Centrão e baterias barulhentas como os seguidores do capitão. A sinopse desses blocos tem texto, relator e objetivo comuns: mais din din em forma de auxílio emergencial.

*Armando Cardoso é jornalista

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