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Angústias e contradições

No frigir dos ovos, salvam-se os biscoitos e o café

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Vovó costumava dizer que, quando algo está explodindo no peito, o melhor é desabafar com alguém, seja parente, seja amigo, desde que de confiança. Não que queira ir contra a sapiência da matriarca da família, mas tenho cá minhas reticências. É que possuo certas guerras interiores, que prefiro que permaneçam ocultas para o meu próprio bem, além, é óbvio, de poupar os ouvidos dos que nada têm a ver com isso.

Para mitigar tanta angústia, travo infindáveis discussões comigo mesma nos mais improváveis locais. Chega a ser engraçado, por exemplo, quando estou em reuniões no trabalho, com o gerente falando sobre as novas diretrizes da empresa, todos os colegas atentos àquela voz monótona, enquanto minha mente vagueia por caminhos obscuros na vã tentativa de encontrar a solução do sentido da vida. Será que me faltam parafusos ou, então, todos estão deveras apertados? Seria o caso de afrouxá-los?

Maria Rita Oliveira de Araújo, 48 anos, divorciada, sem herdeiros para sofrer com a desgraçada carga genética que, certamente, eu lhes transmitiria. Pelo visto, você deve ter percebido que já li ou, ao menos, conheço a famosa passagem de ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, do inigualável Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

Por que me divorciei? Simplesmente porque jamais deveria ter aceitado a proposta de casamento de Álvaro. Não que ele não fosse um sujeito interessante. Bom emprego, atencioso, amante razoável, nunca reclamou das minhas constantes enxaquecas. Ademais, até onde me consta, fiel que nem um perdigueiro.

Pego de surpresa, meu então marido, a princípio, tentou me dissuadir. No entanto, não tardou, aceitou de bom grado a separação. A única coisa que me pediu foi ficar com Cauby e Ângela Maria, o casal de canários que ganhamos do meu sogro no nosso primeiro ano de casamento.

Álvaro se mudou no dia seguinte para um apartamento no prédio em frente. Ainda hoje nos falamos, como se fôssemos velhos conhecidos. Quem não sabe que fomos marido e mulher talvez imagine que formaríamos um belo casal, ainda mais porque, de vez em quando, somos vistos sentados no banco debaixo do belo flamboyant às gargalhadas.

A vida é complexa, e procuro me equilibrar nessa gangorra, que ora pende para um lado, ora para o outro e, não raro, cisma em girar que nem pião e, não duvide, pode até ser carregada por redemoinhos, que chegam sem avisar. É uma loucura. Tanto é que nem tento controlar essas incertezas.

Se estou preocupada com os rumos da empresa? Hum! Finjo concordar com o discurso do gerente. E, já no final, ainda digo que estou pronta para colaborar da melhor forma possível, mesmo não tendo prestado a menor atenção no que foi dito. E, antes de todos sairmos, ainda elogio o café e os biscoitos servidos. Neste caso, fui sincera.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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