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Amigo é pra essas coisas

O azar de Gonzaga era ter uma amizade de infância com Francisco

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Há males que vêm pra mal. Amigos chatos são um deles. E amigos chatos que fazem visitas intermináveis são ainda piores.

O azar de Gonzaga era ter uma amizade de infância com Francisco. Este, chatinho desde criança, piorara muito com a idade. E adorava fazer longas visitas a Gonzaga, quase sempre na hora do jantar.

– Minha mulher é um doce, mas cozinha muito mal. E amigo é pra essas coisas… – completava com um risinho.

Certa tarde, em meio a uma visita que começara por volta do meio dia – Francisco havia filado o almoço – e aparentemente não tinha hora pra acabar, Gonzaga apelou. Verificou quais chegados estavam online e mandou a seguinte mensagem a um deles:

“Liga pra mim. Depois desliga, sem problema. Preciso que essa josta de celular toque!”

O amigo ligou e desligou pouco depois. Gonzaga atendeu na hora, foi para o quarto ao lado e falou alto para o vazio, de modo que Francisco o ouvisse.

– Francisco? Tá aqui sim. Quer falar com ele? Não? OK, só dar um recado. Quem? A mulher dele? Com quem? Compreendo, acha melhor não dizer. Pode deixar, aviso sim..

Voltou à sala onde o chato o esperava, pálido, depois de ouvir tudo.

– Amigo, vai pra casa rapidinho. Não vou falar por quê, pode ser uma brincadeira de péssimo gosto, mas te arranca. Nesse instante!

– Me conta o que é, porra!

Gonzaga não respondeu. Ensaiou um sorriso sábio e melancólico, tipo “A vida é dureza, mas é a única que temos” e foi empurrando Francisco porta fora. Tão logo ele saiu, o anfitrião forçado deu um suspiro de alívio, pegou uma garrafa de bom uísque (ficava escondida, se não Francisco repetia o mantra “amigo é pra essas coisas” e a esvaziava rapidinho), preparou uma generosa dose e a tomou bem devagar, em silêncio, curtindo a solidão.

Menos de três horas depois, a campainha tocou. Gonzaga abriu a porta. Era Francisco, de mala e cuia. A cuia era metafórica, mas a mala estava na mão dele, bem gordinha.

– Tu és meu único amigo! – balbuciou Francisco, os lábios tremendo, à beira de uma crise de choro. Pelos olhos vermelhos, não seria a primeira.

– Ouvi parte da ligação e depois me mandaste pra casa – prosseguiu. – Pois bem, encontrei minha mulher transando com o vizinho! Dei umas porradas nele mas não toquei nela, é a mãe dos meus filhos. E deixei-a ficar com a casa, pra ela e as três crianças. – Deu uma fungada e prosseguiu.

– Então, amigo, vais me abrigar. Pouco tempo, dois, três meses no máximo, Pode deixar que eu compro a birita. Sei que vocês, petralhas, só bebem cachaça, aprenderam com o novededos – provocou, exibindo um lado bolsomínico até então oculto; Gonzaga, fiel eleitor do Lula, teve vontade de estrangulá-lo.

Aparentemente já acostumado com o peso dos chifres, o gado do Bozo sorriu pela primeira vez, revelando os dentes podres.

– Já eu não dispenso um malt uísque. Se caprichares no almoço e no jantar, posso até te oferecer algumas doses. Afinal – e soltou o mantra, que Gonzaga ouviria, numa gastura crescente, ao longo dos cinco meses seguintes –, amigo é pra essas coisas.

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