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Carpideiras do defunto alheio

Política e políticos brasileiros derretem como bala de limão

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Eraldo Peres/Reuters Via ABr

Sou adepto da filosofia de que religião, política, escola de samba e clube de futebol cada um tem o seu. A mesma máxima parece que se aplica hoje ao Brasil. Cada um tem o seu. Ocorre que, nesses tempos nebulosos em que vivemos, difícil ter certeza, por exemplo, da realização de eleições plenas no futuro. Pior ainda é nos imaginarmos vivos até lá. Espero estar. Não sou chegado a símbolos, tampouco a colorações partidárias. Por isso, para não correr riscos de morte, tenho evitado sair às ruas com determinado tipo de roupa ou de adereço. É esse o grau de imbecilidade a que muitos chegaram. Tento ser apartidário e ter a família e os amigos como prioridade ideológica. No entanto, vez por outra me surpreendo com o crescimento de minha insanidade política. Felizmente é passageira e normalmente fica limitada a meus primitivos pensamentos.

Ponho logo os pés no chão, as mãos na consciência, penso na totalidade do Brasil e rendo homenagens àqueles que, em qualquer situação, optam pelas cores do coração. É o fim do mundo? Não! Pelo menos para os brasileiros é apenas o começo do fim do mundo. O nível de competição por doutrinas ideológicas beira a alucinação e o delírio. Essa alienação certamente nos levará a caminhos absolutamente desconhecidos. As últimas manifestações, sobretudo a do Sete de Setembro, são uma pequena mostra do que, acredito, ainda está por vir. As ruas e avenidas do país têm recebido fileiras de grupos de esquerda ou de direita em protestos contra esse ou aquele líder. É do jogo político-partidário. O problema é que, enquanto isso, o país definha, derrete como bala de limão. É brasileiro esfolando, matando ou torcendo pelo desmantelo de outro brasileiro. Tudo em nome de uma barbárie denominada “amor ao Brasil”.

A luta diária é para saber que extremo colocou ou colocará mais manifestantes gritando ou ameaçando o semelhante nas ruas de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e demais capitais. São estatísticas produzidas com um único objetivo: satisfazer egos. Milhões de brasileiros não têm emprego, outros tantos estão na miséria e milhares perderam a vida para um vírus que, sabemos todos, poderia ter sido menos letal. Apesar da proximidade com o precipício, ainda não vi debates antecipados sobre recuperação da economia, das relações externas e da autoestima do povo. Aliás, poucos estão preocupados com o povão que apenas torce pelo Brasil. Somos hoje uma nação profundamente dividida em termos de ideias. Não existe mais solidariedade entre irmãos.

Talvez houvesse a necessidade de uma tragédia. E ela quase ocorreu no Dia da Independência. O modus operandi de um lado e de outro não me dá alternativa a não ser comparar nossos anarquistas com os extremistas vinculados à seitas como Al Qaeda, Hezbollah ou Talibã. Não há diferença entre esses e aqueles que, em nome de um objetivo político menor, tentam invadir o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, defendem a prisão de ministros, depredam sedes públicas, quebram ou queimam fachadas de lojas e, se puderem, matam opositores. Esquecem que são ações comuns a terroristas e que o desfecho é igual em qualquer lugar do mundo: o isolamento e a escuridão. Se querem que o país permaneça uma republiqueta de bananas, mantenham a exacerbação insana dos conflitos e a polêmica e bobagenta divisão entre esquerdopatas e direitopatas.

Agrada meia dúzia de alienados, mas, honestamente, nada mais idiota do que se enrolar em bandeiras, embandeirar carros, pintar rostos ou produzir faixas e cartazes ameaçadores. Muito mais importante e interessante do que a confusão é esperar o ano que vem, também conhecido por 2022, e usar o voto para escolher bem e com isenção um presidente que represente pelo menos a maioria. Penso no amanhã, mas me preocupo com o hoje. Dois terços do eleitorado não querem Jair Bolsonaro, um terço tem horror a Luiz Inácio e três terços ainda não sabem o querem. Amam odiar Ciro Gomes, Luiz Henrique Mandetta e João Dória, mas odeiam amar qualquer outro postulante sem alinhamento extremo.

Então, se desejam um país sério e de todos, melhor se matricularem em cursos intensivos de capacitação política, de respeito ao próximo e, principalmente, de apoio irrestrito à democracia. Práticas fascistas devem ser banidas até do imaginário humano. O tempo urge e está terrivelmente colocado entre a razão e a emoção de 213,3 milhões de nativos. Oposição a esse ou aquele candidato não deve ser chamada de esquerda ou de direita. Agradem ou não, nossas opções nas urnas sem voto impresso são sinônimos de sanidade, lucidez, evolução, discernimento, inteligência, bom senso e humanidade. Jair Bolsonaro não faz parte do meu universo político. Entretanto, está cada vez mais difícil firmar oposição em um lado para chamar de meu. Deixemos de ser carpideiras e permitamos o enterro do finado alheio com paz, harmonia e respeito. Lembremo-nos sempre que até mesmo entre os defuntos cada um tem o seu.

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