Curta nossa página


Almir, o borracheiro

Potiguar volta para Caicó e deixa amigo matutando

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Aos 93 anos, é óbvio que conheci muitas pessoas ao longo desse tempo todo. Amizades com gente brilhante, fiz algumas, mas a grande maioria de criaturas comuns. Todavia, por sorte, nasci com faro de perdigueiro, o que me ajudou a ficar bem longe dos imbecis, facilmente detectáveis por conta da brutalidade, muitas vezes associada à falta de humor.

Pascácios, no entanto, não faltam nesse mundo. Acreditam em qualquer bobagem e, pior, querem porque querem reproduzir tolices, como se fossem mimeógrafos entorpecidos pelo álcool. Carbonos borrados de brutamontes que afinam diante da primeira intempérie, não suportam o confronto, tanto mais a dor do parto. Covardes que são, deixemos esses tolos com suas tolices.

Hoje quero falar especificamente de um homem simples, mas jamais simplório, que conheci quando lá estava eu com não mais de 25 anos, talvez pouca coisa aqui ou acolá. Tanto faz, pois em nada muda o rumo da história. Almir Matoso, vulgo Borracha, por conta da profissão, borracheiro próximo às entranhas de Brasília.

Proveniente de Caicó, Rio Grande do Norte, Borracha chegou por aqui pouco antes da inauguração da nova capital. Cheguei pouco tempo após e, por conta de não um, mas dois pneus furados, fui socorrido pelo sujeito.

— Doutor, aqui tudo é estrada de chão, mas logo, logo vai ter asfalto por todo canto. Por um lado, vai ser bom, mas, por outro, vai ser um Deus nos acuda.

— Vai ter menos pneu para concertar?

— Vai ter até mais. Com o asfalto, vai encher de carro por aqui. O problema é outro.

— Qual, meu amigo?

— O calorão vai ser de lascar.

Borracha, profético, sabia das coisas. Não possuía muito estudo, nem chegou a cursar o científico, como se falava naqueles tempos. Regulava com minha idade, mas sempre me tratou como doutor, talvez por conta do paletó.

Na semana passada, quando minha filha veio me buscar para almoço de domingo, passamos pela antiga borracharia do meu amigo. Nenhuma placa, mas logo reconheci o local, apesar das inúmeras construções ao redor. O asfalto, como Almir havia profetizado, havia tomado as ruas de barro vermelho.

Pedi para minha filha parar por um instante. Desci e fui buscar informações com algumas pessoas. A única que soube me dizer algo foi uma senhora, que disse morar por ali há mais de 20 anos.

— O Borracha se aposentou e voltou para a terra natal. Mas já deve ter morrido, pois era muito velho.

Agradeci pela informação e voltei a entrar no veículo da minha filha. Seguimos para sua casa. O almoço estava delicioso, carne de sol com aipim frito, que, certamente, o Borracha chamaria de macaxeira.

Estou pensando em lhe fazer uma visita, seja em Caicó, seja até no cemitério, pois também já sou muito velho.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência Estadão, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.