Dotes domésticos
Que tal ser artista da vida na vida que imita a arte?
Publicado
em
Eu sempre quis ser artista. Ter um talento, uma habilidade que arrancasse aplausos, likes, talvez até uns contratos internacionais. Mas tem um pequeno detalhe: não possuo nenhum talento artístico. Zero. Nenhum. É quase uma arte não ter arte nenhuma.
Veja bem, eu sei fazer um arroz soltinho. Soltinho mesmo, daquele que cada grão vive sua vida independente, respeitando o espaço do vizinho. Isso é arte? Não sei. Talvez na categoria gastronomia doméstica comedida, mas o júri de Cannes nunca me ligou.
Sou capaz de acordar no horário certinho sem despertador. Isso é arte? Olha… no mundo moderno, com tanta gente perdendo a hora, talvez, sim. O meu relógio biológico merece, no mínimo, uma menção honrosa.
Eu também sei dobrar lençol de elástico. Isso, sim, deveria ser considerado uma instalação de arte contemporânea. Porque quem já tentou dobrar sabe: é praticamente um origami demoníaco. Mas eu domino. Dobro, empilho e ainda guardo na gaveta com um sorriso vitorioso.
E o meu talento mais subestimado: eu sei decifrar letra de médico. Aquela caligrafia que parece ter sido feita por alguém possuído no meio de um terremoto. Isso é quase mediunidade.
Pintar? Não sei. Desenhar? Nem boneco de palito fica simétrico. Cantar? Só no banheiro, e, mesmo assim; minha própria voz pede pra eu parar. Dançar? Parece que estou tentando desviar de pombos invisíveis na praça.
Então, fico nesse dilema: queria ser artista, mas o máximo que eu produzo são uns stories organizados, um arroz digno e um cronograma de sono invejável. E cá entre nós: com a inflação do conceito de “influencer”, daqui a pouco isso tudo já conta como performance artística.
Se um dia abrirem uma Bienal da Vida Doméstica, eu tô dentro. Até lá, sigo sendo artista do cotidiano, especialista em nada, mas com um repertório invejável de pequenas vitórias.
1 Comments