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Tocando a vida

Querer liberdade não é sinônimo de feminista

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Autor/Imagem:
Andrea Pavlovitsch

Meus avós são todos estrangeiros. Por parte de pai, vindo de Portugal, de uma aldeia rural encravada nas montanhas. Por parte de mãe, um avô fruto da aristocracia russa e uma avó que o conheceu trabalhando numa fábrica de tecidos. Todos desembarcaram no Brasil, com pelo menos um filho pequeno e a vida toda pela frente.

O feminismo explodiu na nossa cara, graças a Deus, e eu comecei a me perguntar de onde veio essa coisa que eu sempre tive de não, nunca, jamais me considerar menos por ser mulher. Sempre fui “do contra” e lembro de ter deixado meus pais de boca aberta num almoço de família, quando falei que escrevi um livro (na verdade, uma história num caderno usado) cuja temática era o preconceito racial. Eu, uma menina da elite classe média, educada a vida toda em colégios santos e caros, cuja porcentagem de negros era um na quarta série e outra na oitava.

Nunca gostei das “meninas populares” do prédio ou da escola. Brincava com elas porque era obrigada pelos meus pais, mas gostava das estranhas. A Renata, por exemplo, que conheci aos 9 anos, tinha uma mecha de cabelo branca na cabeça, mesmo aos 10 anos de idade. Era a filha mais nova de 4 meninas, criadas pelo pai porque a mãe tinha ido embora. Era o exemplo do “com quem não andar” dos anos 80.

Minha mãe brigava comigo, mas eu adorava o jeito profundo e diferente dela. Depois que ela se mudou do prédio, foi a Luciana, uma menina magrinha de cabelos curtos com quem eu escrevia jornais e vendia no prédio de porta em porta. A família dela era “pobre”, com uma casa sem decorações e um único Danete por mês, que era comido aos poucos. Mas era superinteligente, sagaz e feminista, mesmo tão jovem.

Sempre ouvi minha mãe dizer para gente estudar e ter uma profissão “para não depender de homem”. Isso sempre me focou na minha vida profissional mais do que na amorosa, por muitos anos. Mantinha relacionamentos, não por amor, mas pelo tamanho da independência que conseguia ter na relação. Pegou no meu pé? Acabou.

Pensando na minha avó portuguesa, que era o amor da minha vida, conheci ela doente. A doença começou no ano em que nasci, então, cresci vendo-a definhar. Mas as histórias pregressas eram bem outras. Ela sempre trabalhou muito, junto com o meu avô. Trabalhou anos, inclusive, ajudando a levantar as casas, como auxiliar de pedreiro. Cozinhava muito bem, tinha uma horta no quintal e criava meu pai, sob regras rígidas e cruéis de um marido extremamente machista e rude.

Nos anos 60, montou uma loja de panelas e artefatos para a cozinha que, se tivesse prosperado, poderia durar até hoje. Mas a doença veio, com ela a depressão e levou tudo. Mas a força dela era evidente. Nunca quis usar cadeira de rodas e continuou fazendo o que conseguia, até seu último suspiro, aos 62 anos, em 1990. Ficaram as lições e a saudade.

Então, a realidade é que venho de uma linhagem de feministas. Feministas porque, dentro do possível para as suas épocas, pensaram em si mesmas e pensaram em cuidar de si mesmas e umas das outras. Tinham força e garra, enfrentaram o machismo hostil e cruel de tantos e tantos anos. Viram seus filhos e filhas sofrerem por serem mulheres e sempre me estimularam, direta ou indiretamente, a ser e a pensar diferente.

Agradeço à contribuição feminista de cada mulher da minha família. E também ao machismo que elas, infelizmente, não conseguiram mudar. Porque é justamente isso que eu mudo agora, para as novas gerações, as minhas duas sobrinhas mulheres, meu afilhado e todas as mulheres do futuro. Sim, somos feministas. Desde sempre. Graças a Deus.

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