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Carta a Lula

Quilombola pede socorro na luta por seus direitos

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Claudio Ferreira/Via ABr - Foto Divulgação

Uma carta escrita de madrugada. A mãe, Rose, analfabeta, e a filha, Franciele, estudante de direito, capricharam nas explicações. Escreveram, escreveram, escreveram. Quando viram, a vida estava ali, naquelas oito páginas. Era a chance.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Salvador no dia 11 de maio para assinar o decreto de regulamentação da Lei Paulo Gustavo, e elas precisavam chamar a atenção para um desespero. No dia seguinte, durante o evento, ouvia-se de longe o grito da mulher: “Lula, pelo amor de Deus. Estamos sem água, sem esgoto, sem escola. Socorro!”

“Traga ela aqui”, pediu o presidente.

Rose Meire dos Santos Silva, de 44 anos, foi ultrapassando as fileiras uma a uma e era contida pelos seguranças na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, lugar em que o presidente assinou o decreto de regulamentação da Lei Paulo Gustavo, no último dia 11 de maio.

Ela gritava pedindo para entregar um documento ao presidente. Primeiro, Lula pediu que ela esperasse um pouco. De tanto insistir, Rose foi atendida. Subiu ao palco, se ajoelhou, se emocionou e ergueu o coração. “Lula, nosso povo está morrendo. Pelo amor de Deus”. Depois, o presidente assinou o “recibo” e também foi às lágrimas. Precisou tomar um copo d’água.

Luta para sobreviver porque a comunidade, com 150 famílias em 104 hectares no município de Simões Filho (BA), carece de direitos básicos e vive em um conflito com a Marinha, que construiu a Base de Aratu naquelas cercanias, na década de 60. “A gente vem sofrendo há mais de 50 anos. A gente paga, mas não tem iluminação pública, nem posto de saúde, nem escola”. Aliás, para ir e voltar da escola, as crianças precisam caminhar cerca de 14 quilômetros.

Outro problema que ela reclama é a falta de transporte e de acesso independente à comunidade. Para chegar à própria casa, os moradores precisam passar pela área militar. Isso dificulta, conforme ela explica, até o socorro de saúde quando há necessidade.

Rose Meire diz que um problema gravíssimo é a falta de água porque os militares impedem o acesso ao Rio dos Macacos, que dá nome à comunidade e é tratado como santuário desde os antepassados. “Precisamos do uso compartilhado do rio. Andamos com baldes por quilômetros para conseguir água. O que eles nos fornecem não é o suficiente. Fomos tratados como invasores. E os invasores foram eles”.

A comunidade está assustada com o que ouviram de militares, sobre a possibilidade de construção de um muro que impediria qualquer acesso às águas. “Esse muro significa a morte do nosso povo quilombola”, escreveu a dupla na carta entregue ao presidente.

“Nosso povo foi criado aí nessas águas, pescando, cuidando do corpo, do espírito. Não tem como a gente sobreviver sem água. O que eu coloquei naquela carta foi pedindo as políticas públicas”.

O que vem da terra
Para sobreviver, a comunidade trabalha com agricultura familiar. Rose Meire relata que mais de 100 famílias já foram embora por causa da falta de condições mínimas. A jaca e a mandioca naquelas terras já foram mais promissoras e atraíam compradores de fora.

O período de seca, a pouca água, a falta de insumos e equipamentos deixaram a situação mais complicada para vender o excedente. “Aqui é todo mundo só na enxada. Se tivesse um tratorzinho, a situação poderia ser diferente”.

Mesmo assim, a terra ainda rende para subsistência. “Feijão, mandioca, banana, milho, amendoim, batata. A gente planta dentro da comunidade. Se a gente tivesse material para desenvolver, não passava fome”. Rose Meire diz que já perdeu sete irmãos por causa do isolamento.

“Segurança nacional”
Em nota à reportagem da Agência Brasil, a Marinha entende que foi estabelecido um procedimento conciliatório para uma “solução negociada” com a comunidade quilombola.

“A área atribuída à Marinha engloba a Barragem Rio dos Macacos e é considerada de segurança nacional, por contribuir para o planejamento das atividades relacionadas ao interesse nacional e à execução de políticas definidas para a área marítima”, diz a nota.

Os militares admitem que o principal acesso à comunidade é pela área militar. “Nesse contexto, a Marinha sempre permitiu, como ainda permite, a passagem regular dos moradores, de seus convidados, visitantes e de qualquer membro dos órgãos governamentais”. Acrescenta o documento que o governo da Bahia faz a construção de estradas de acesso independente à comunidade para aprimorar as políticas públicas.

Porém a Marinha não prevê o uso compartilhado do rio. “Sobre esse ponto, é importante registrar que a barragem é fonte de água única e essencial ao funcionamento e existência de todas as organizações militares que se encontram na área da Base Naval de Aratu (BNA), constituindo o Complexo Naval de Aratu, onde trabalham 1.800 militares e civis”.

Providências
Também em nota, o Ministério da Igualdade Racial garante que “acompanha de perto e com preocupação a situação do quilombo Rio dos Macacos”.

“Nossa equipe já realizou atendimentos à população e está organizando uma missão interministerial ao local para executar escuta qualificada e ampla da situação de violações e vulnerabilidades por qual a comunidade quilombola está passando”

Direitos
Em caso de escuta qualificada, os servidores públicos poderão ouvir histórias variadas, como a de Franciele dos Santos Silva, de 23 anos, filha de Rose Meire. A mãe pede que nem ela nem as outras três irmãs apareçam em fotografias. Tem medo de represálias. Ela é a primeira da comunidade a chegar a uma faculdade. Conseguiu ingressar no curso de direito da Universidade Federal da Bahia. Para ir todos os dias às aulas, sai da comunidade às 16h e chega perto das 19h no campus. Mas o esforço é com alegria.

“Eu resolvi, na verdade, estudar direito porque venho de uma comunidade quilombola que não tem nenhum tipo de política pública. Já sofreu diversas violências e ameaças. A Marinha invadiu nossas terras há mais de 50 anos e a partir daí, a gente vem sofrendo inúmeras violações de direitos”.

O que a inspirou também foi o fato de ter perdido anos letivos no ensino fundamental porque não conseguia chegar à escola por falta de transporte. “Entrei na faculdade em 2019 para cursar ciência e tecnologia. Depois, fiz o Exame Nacional do Ensino Médio novamente e entrei em direito”. O exemplo de Franciele fez com que outros jovens também sonhassem com o ensino superior. “Agora temos o total de oito pessoas da comunidade na universidade pública”.

Ela lamenta, entretanto, que precisa passar por dentro da Vila Naval e tem até o acesso negado. “A gente não tem iluminação pública, nem água encanada, nem esgotamento sanitário”. Toda vez que pensa em desistir, em função de estudar no período noturno, lembra da força da mãe.

“Uma mulher de força, luta e inspiração. Agora a gente espera que esse esforço dela não tenha sido em vão. Foi um pedido de socorro a carta que ela entregou nas mãos do presidente. Eu e ela sentamos e a gente escreveu essa carta na madrugada daquele dia”.

A Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) trabalha em apoio às necessidades da comunidade quilombola Rio dos Macacos. Assessores jurídicos da entidade ouvidos pela reportagem entendem que o Ministério Público tem apoiado as ações para que o Estado Brasileiro cumpra o dever de cuidar daquelas pessoas. Mas explicam que há um longo caminho para a garantia desses direitos diante de tanta desassistência.

Problemas, inclusive, que são antigos, e que datam da década de 60. Violações contra a comunidade foram registradas pelo documentarista baiano Josias Pires Neto. Mesmo assim, a Marinha nega que haja registro de violência. O primeiro filme foi um curta, Quilombo Rio do Macaco, lançado em 2011.

Depois, veio o longa Quilombo Rio dos Macacos (lançado em 2017).

Os trabalhos têm direitos abertos de exibição. “Os filmes foram importantes para mostrar que existiam quilombolas com mais de 90 de idade e que não era invasores. Eles já estavam ali”.

O documentarista explica que, desde a construção da Vila Naval, onde iriam morar os militares que serviriam naquela organização militar, os quilombolas trabalharam nas casas dos militares.

Depois os conflitos foram crescendo com histórias de humilhação e violência, segundo o documentarista. Conforme testemunha o cineasta, as situações ficam rígidas ou flexíveis a depender do comandante que serve na base. Ele entende que dar visibilidade à comunidade ajudou para que os quilombolas não fossem expulsos do local, como se fossem invasores. “Um acordo judicial foi viabilizado”.

“É uma comunidade muito frágil e sem acesso a direitos humanos básicos e fundamentais. A luta continua para que eles possam ter pelo menos o uso compartilhado da represa porque é uma área em que eles pescam”.

Quase 10 anos depois do último filme, as imagens ainda são difíceis, mas também são de luta, de madrugadas em claro e de uma carta com pedido de esperança.

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