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A última manga

Raimundo, com raiva da porca, come feijão, arroz e farinha

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Há muito tempo, mais precisamente por volta do finalzinho dos anos 1950, um certo menino, lá pelos seus sete anos, de nome Raimundo como tantos outros em uma velha cidade nordestina, lutava para comer o pão que o Diabo amassou, tamanha a penúria da família. Depois da batalha, ainda precisava dividi-lo com a mãe e as duas irmãs mais velhas, Maria e Antônia. As carnes penavam para se manter naqueles cambitos e gravetos secos.

Os três irmãos levantavam mais cedo do que o Sol, que, preguiçosamente, só dava as caras quando eles já estavam a caminho da escola Dona Enide. As meninas, mais resignadas, caminhavam firmes. Raimundo seguia atrás, muitas vezes tendo que ser arrastado pelo braço para apressar o passo. A fome os consumia.

Arroz, feijão e um tanto de farinha. Era o que aquele povo possuía para comer. É verdade que, de tempos em tempos, o feijão rareava. Às vezes, faltava arroz e, dependendo, até a farinha era pouca. A escassez doía nos esqueletos, que teimavam em permanecer de pé.

Durante a aula, Raimundo se entretinha mais em sonhar com algo além de arroz, feijão e farinha. Não raro, perdia a explicação sobre vogais e consoantes. Na verdade, desde sempre ele convivera com quatro letras: F, O, M, E. Isso, aliás, ninguém lhe tirava da barriga.

Pois foi justamente algo que lhe aconteceu na saída da escola, quando tentava acompanhar os passos das irmãs ali no Beco da Mangueira, esquina com a rua Domingues Nunes, que marcou o caráter do menino para sempre. O beco, aliás, tinha tal alcunha porque havia um pé de manga. Não desses frondosos, mas um que também tentava sobreviver naqueles tempos de vacas magras.

Atento a qualquer oportunidade, Raimundo se deparou com aquele milagre. Lá estava, bem no topo da árvore, uma manga. Mas não uma manga qualquer. Era a última da estação. O bucho do pirralho suplicava por aquele manjar dos deuses.

Raimundo pegou uma pedra, mirou bem e atirou, certo de que derrubaria a fruta. Que nada! Errou. Catou outra pedra, mirou melhor e ela passou ainda mais longe. Desesperado, pegou mais uma, duas, três, todas as pedras que encontrou. Uma a uma, nenhuma conseguiu derrubar a manga, que se mantinha firme lá no alto.

Quase sem forças, o moleque encontrou a derradeira pedra. Esfregou bem as mãos, rezou para todos os santos, alguns que nem existiam. Fez mira de índio que joga flecha certeira. Acertou bem em cheio.

A manga despencou lá de cima. Raimundo mal acreditou no seu feito. Correu feito bebê que chora por peito quando, então, uma porca, saída de não se sabe onde, ligeira que nem preá, abocanhou a manga e saiu desembestada. O moleque, feroz como onça-pintada, foi ao seu encalço, mas sem sucesso.

Lá se foi a manga, devorada logo adiante por aquela porca desalmada. Ao pobre Raimundo, desolado, só restou amaldiçoar a leitoa. Que virasse torresmo! Moído de ódio, foi despertado pelas irmãs daquela embirração.

— Raimundo, vamos logo, que hoje tem arroz, feijão e farinha.

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