Transformando palavras
Recheio da alquimia deixa literatura mais realista desde a Idade Média
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Desde a Idade Média, os símbolos, metáforas e conceitos filosóficos da alquimia estão envoltos em mistério e suas histórias, ricas em ocultismo, tornaram-se uma fonte de imagens e inspiração para artistas e escritores. A alquimia foi deixando de ser uma prática unicamente protoquímica, pois seus elementos e símbolos podem ser utilizados para a nossa jornada interior. O interesse pela transmutação alquímica de qualquer metal em ouro e a pedra filosofal, podem ser utilizados como metáforas por várias correntes literárias para representar o aperfeiçoamento espiritual ou a evolução do protagonista ou de um grupo. Mas, o que a alquimia tem a oferecer como fonte de inspiração nas diversas manifestações culturais ao longo da história? Nesse texto, trouxe exemplos, pois a historiografia do tema é infinita.
A iconografia alquímica, com seus símbolos e imagética, é amplamente utilizada por artistas e escritores para representar temas como mudanças, renascimento e iluminação. Por exemplo, temos o Ouroboros (a serpente que morde a própria cauda), o Athanor (forno alquímico) e a Pedra Filosofal. Autores como Goethe, em Fausto, e Paulo Coelho, em O Alquimista, exploram a alquimia como um símbolo da jornada do herói, onde a transformação interna é tão ou mais importante que a material. Entre tantas obras excelentes, Umberto Eco criou essa obra impactante, O Nome da Rosa, um marco na literatura por sua complexidade e profundidade filosófica. A história ocorre na Itália, em um mosteiro de Beneditinos, onde o monge franciscano, Guilherme de Baskerville, é encarregado da investigação de assassinatos que ocorrem no mosteiro.
Essa obra é um exemplo magistral da fusão entre ficção histórica, romance policial e ensaio filosófico, sua abordagem inovadora ampliou os limites do romance, tornando-se referência para escritores posteriores. Está repleta de referências à filosofia medieval, à teologia cristã, à literatura clássica e à semiótica, campo de estudo do autor. A trama reflete um embate entre razão e fé, representado pela busca do conhecimento e pelo obscurantismo da Igreja medieval, questionando a censura e a perseguição ao pensamento crítico, temas que permanecem relevantes na sociedade contemporânea, fazendo uma crítica ao dogmatismo e ao autoritarismo.
Assim como a alquimia busca a transmutação da matéria, o romance sugere uma “alquimia do conhecimento”, onde a investigação racional e o estudo profundo levam à evolução do pensamento humano. A obra influenciou outras narrativas históricas e investigativas, consolidou Umberto Eco como um dos grandes escritores do século XX e demonstrou como um romance pode ser, ao mesmo tempo, um desafio intelectual e uma obra de grande apelo narrativo. Foi adaptada para o cinema e em quadrinhos. A alquimia tem sido uma fonte de inspiração para diversos escritores latino-americanos, tanto no sentido esotérico e filosófico, bem como metáfora de transformação espiritual e social. O Brasil, pais de cultura rica e variada, tem produzido escritores e obras espetaculares que utilizam a alquimia como fonte de sua inspiração.
Apesar de não ser brasileiro, o argentino Jorge Luís Borges tem grande influência sobre a literatura brasileira quando se fala em alquimia e ocultismo. Vários autores nacionais foram influenciados direta ou indiretamente pela visão labiríntica da realidade de Borges, como Rubem Fonseca, Moacyr Scliar e João Gilberto Noll. O livro “O Alquimista”, de Paulo Coelho, é uma parábola sobre a busca interior e a transformação pessoal, inspirada no conceito da Grande Obra alquímica; além de “Brida”, que trata da iniciação mágica e “O Diário de um Mago”, um relato esotérico autobiográfico, seu autor é um dos escritores brasileiros mais ligados à alquimia, teórica e prática.
Murilo Mendes, poeta modernista e surrealista, explorou o misticismo em sua obra, incluindo aspectos da alquimia como metáforas de transformação espiritual, em sua obra “Poesia Liberdade”, há referências ao hermetismo e ao conhecimento oculto. Mario de Andrade, autor de “Macunaíma”, escreve em uma narrativa que pode ser lida sob uma ótica alquímica: a jornada do herói envolvendo transmutação e busca de sabedoria que são os elementos mágicos e mitológicos que dialogam entre si e o leitor. Guimarães Rosa, autor do sensacional “Grande Sertão: Veredas” e que pode ser interpretado como uma jornada alquímica onde o protagonista Riobaldo passa por diversas etapas de aprendizado e transformação. O pensamento esotérico está presente pela criação de um universo repleto de significados ocultos e simbolismos místicos.
Moacyr Scliar é outro autor nacional importantíssimo. Escreveu contos e romances com influência de mitologias e símbolos alquímicos, na obra “A Mulher que Escreveu a Bíblia”, a alquimia do conhecimento é representada pelo poder da escrita usando metáforas de transformação, conhecimento oculto e ascensão espiritual, que dialogam com conceitos da alquimia simbólica. Embora não seja explicitamente um romance alquímico, é possível encontrar algumas metáforas que podem ser interpretadas sob essa ótica. A alquimia, em seu sentido simbólico, trata da transformação, seja da matéria bruta em ouro ou do espírito humano rumo à iluminação. Escritores de literatura esotérica e filosófica, como Marcelo Del Debbio, exploram o hermetismo e a alquimia diretamente.
Ele é um escritor e pesquisador de ocultismo conhecido por suas obras sobre magia, simbolismo, cabala, mitologia e sociedades secretas. Suas principais obras incluem “Arkanum”, “Enciclopédia de Mitologia” e “Teoria da Conspiração”. Utiliza uma abordagem iniciática e hermética, explorando tradições esotéricas antigas e simbolismos através da Cabala, Tarot, Alquimia e Astrologia. Também influenciou o cenário de RPG no Brasil, trazendo elementos esotéricos para o jogo. Na literatura, o uso do ocultismo como estrutura, pano de fundo ou caracterização de um personagem, permite ao autor acessar conceitos, contextos ou “verdades”, proibidos. Outro ponto interessante é a possibilidade de desfiar limites da ciência, dos comportamentos, dos posicionamentos morais e sociais, bem como os limites da natureza e da biologia. No horror gótico e na ficção científica é relativamente comum. Vejam só que interessante; em Frankenstein, de Mary Shelley, temos a criação de vida artificial refletindo a busca por um conhecimento que desafia os limites humanos tanto éticos quanto científicos. Uma obra que até hoje nos “perturba”, tamanha é sua importância nas questões de vida, morte e transcendência humana.
A obra de Mary Shelley é um achado para a ciência atual, bem como fonte de inspiração e exposição de nossas angústias existenciais. Em breve falaremos só dele por aqui. O romance Drácula, de Bram Stoker, é outra obra-prima do terror gótico. Ele não só estabelece a imagem de um vampiro “mais humanizado e moderno”, além de conter camadas simbólicas profundas que estão em nosso imaginário coletivo. Uma dessas camadas pode ser interpretada à luz da alquimia em seu aspecto filosófico e sua simbologia esotérica. A estrutura do romance se encaixa nesse paradigma, obter a imortalidade e a purificação, pode ser dividida em três fases que refletem a Opus Magnun Alquímica. Nigredo (Putrefação e Morte) é representada pela chegada de Jonathan Harker ao castelo de Drácula, Albedo (Purificação e Iluminação), está no movimento de Drácula, que ao interagir com Lucy Westenra e Mina Harker busca a purificação e Rubedo (Realização e Transmutação), onde a caçada final e a destruição de Drácula ocorrendo a transformação completa. Sua morte é a conclusão do processo, levando à regeneração e ao restabelecimento da ordem. Temos também a obra de Robert W. Chambers, “O Rei de Amarelo”, que é uma coletânea de contos que mistura teatro, ocultismo e loucura. E o queridinho dos amantes do horror e ficção científica, H.P. Lovecraft em “O Chamado de Cthulhu”, onde o saber oculto leva à loucura e à revelação de realidades aterrorizantes.
Combinar elementos do Ocultismo, ficção cientifica e fantasia que chegam quase a funcionar como ciência, nos leva a pensar que a alquimia está passando por mais uma evolução, onde o conhecimento místico se entrelaça com leis da física e da química. Como exemplo temos a obra O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, sempre ele, que explora sociedades secretas e teorias da conspiração ocultistas. Outra autora, Marguerite Yourcenar, escreveu A Obra em Negro, que acompanha um alquimista renascentista em sua busca pelo saber absoluto. E temos também Hiromu Arakawa, autor do mangá Fullmetal Alchemist, que transforma a alquimia em um sistema científico de transmutação com regras bem definidas. Atualmente temos os autores do selo Saifers, super recomendo, que reúne escritores independentes de ficção científica no Brasil, explorando temas variados que frequentemente dialogam com elementos do oculto e da alquimia.
Alguns autores se destacam nesse contexto como Leonardo Born, que cria narrativas que unem ficção científica e elementos do folclore brasileiro; Rogério Pietro, um autor que explora a ficção científica com uma abordagem única, integrando elementos culturais brasileiros e temas especulativos; Vinícius Canabarro, que combina ficção científica com aspectos do oculto e do misticismo, trazendo uma visão diferenciada ao gênero e Maysa Santiago, que incorpora em suas obras elementos esotéricos em suas narrativas de ficção científica, explorando temas como transformação e transcendência. Esses autores, através do selo SAIFERS, elevaram para outro patamar a ficção científica brasileira ao integrar elementos do oculto e da alquimia em suas obras, oferecendo aos leitores novas perspectivas e experiências literárias. Todos estão presentes na antologia “SAIFERS Volume 1: Folclore, Lendas Urbanas e Ficção Científica”, onde autores aceitaram o desafio de trazer seres lendários para os domínios da ficção científica. A alquimia na literatura brasileira aparece tanto em obras esotéricas diretas (como em Paulo Coelho) quanto de forma simbólica (Guimarães Rosa, Mario de Andrade, Murilo Mendes).
As tradições da alquimia e do ocultismo têm fornecido inspiração e materiais importantes para a literatura, seja como metáforas para transformação, conhecimento proibido ou mistérios do universo. Essas tradições influenciam narrativas que exploram temas como o autoconhecimento, o poder da mente sobre a matéria e os limites da ciência e da espiritualidade. Esses temas continuam a ser fascinantes na literatura porque falam da eterna busca humana pelo conhecimento e pela transcendência. Eles permitem que escritores explorem a tensão entre ciência e misticismo, razão e fé, progresso e destruição. Seja como metáfora de transformação pessoal ou como ferramenta narrativa para mistérios e descobertas, esses temas permanecem relevantes e poderosos na ficção contemporânea.
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Marco Mammoli, Mestre Conselheiro Membro do Conselho do Colégio dos Magos e Sacerdotisas. O Colégio dos Magos e Sacerdotisas, está iniciando novas turmas. Para informações ou matrículas, os interessados podem entrar em contato direto com o Colégio dos Magos e Sacerdotisas através da Bio, Direct e o Whatsapp: 81 997302139.
