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Pelo em ovo

Recuperar voto impresso é argumento injustificável

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Armando Cardoso* - Especial para Notibras

Benditos sejam os que procuram – e não acham – pelo em ovo. Vida longa àquele que, por algum desassombro, insiste em procurar o que sabe que jamais encontrará. Em qualquer democracia do mundo é salutar que haja divergências, conflitos, questionamentos e posicionamentos diferentes sobre o mesmo tema. É do jogo político. Passa a ser preocupação quando, em um universo macro, apenas um ou dois teimam em reclamar sobre algo que agrada a milhões. Refiro-me ao sistema eletrônico de votação do Brasil, mecanismo sem o qual seria impossível realizar eleições seguras no país. Produto genuinamente nacional, elogiado em todo planeta e testado em pequenos, médios e grandes “mercados” eleitorais, a maquininha brasileira sofre ataques desconfiados e carentes de provas desde sua adoção, em 1996, na primeira gestão do ministro Marco Aurélio Mello à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Quase 25 anos após uma conquista histórica, o Brasil – na verdade integrantes do governo brasileiro – começa a pavimentar um caminho que certamente o levará de volta ao fim da fila no quesito informatização de eleições. Na contramão do mundo no combate à pandemia, o presidente da República, seguindo ensinamentos fracassados de Tio Sam, encasquetou com o tal do voto impresso, apetrecho que todos os magistrados, juristas e pessoas que já serviram ou servem à Justiça Eleitoral entendem como retrógrado e sem qualquer novo valor ao sistema. A insistência parece birra de menino mimado ou, quem sabe, uma antecipada desculpa supostamente honrosa para uma derrota que se desenha iminente.

Advogado, ex-ministro do TSE e entusiasta da urna eletrônica, Carlos Eduardo Caputo Bastos foi quem melhor definiu as críticas e desconfianças até mesmo de quem vence eleições. Segundo ele, o ceticismo faz parte do script pré-eleitoral dos candidatos, principalmente daqueles que se acham com poucas condições de vitória. O enredo é simples: elogios dos vencedores e gritos e críticas dos perdedores. Interessante é que hoje o principal crítico é um vencedor. Como na comida japonesa, a sinopse parece um combinado com a atual ladainha da impressão do voto como algo que agregaria mais segurança à maquininha de votar. Além de absurda e cara, a ideia, defendida com unhas e dentes pelo presidente Jair Bolsonaro e apoiadores, representa uma galopante e desnecessária volta ao passado de coronelismo e de fraudes eleitorais.

Entre os absurdos já divulgados nas redes sociais sobre nossas eleições, um dos mais recentes sumiu como surgiu. Dizia que somente o Brasil não utiliza votos em papel e que o resultado poderia sofrer influência da Venezuela. Obviamente a mentira não se sustentou, porque, na bancarrota em que se encontra, a única coisa que o governo venezuelano, mal e porcamente, consegue ensinar é como golpear seu povo e a democracia. Tudo a ver com o que paira sob o céu azul de anil do país. E, como lá, se surgir cá, transformaremos a nação de um milagre econômico que virou pó e que um dia foi cantada como terra do futuro em barranco do inferno. A diferença será o comando.

Em lugar de generais com fardas engomadas, um capitão, família e apoiadores absolutamente despreparados para chamar de seu o que um dia foi de todos. Reitero o voto impresso como a embromação da vez. Justamente ele que foi retirado do sistema quando a Justiça Eleitoral entendeu por nefasta a intervenção do ser humano no processo de escolha de parlamentares, prefeitos, governadores e presidente da República. Na prática, o consenso tirou da mão do homem o poder de ajudar a eleger quem não tinha votos. Foi um longo período em que o retrato do Brasil era clicado de acordo com o ângulo determinado pelos barões e coronéis sem fardas, mas armados de razões que eles mesmo criavam. Éramos o país dos jovens, governado por pessoas antiquadas e que sustentavam poderes por meio de fraudes.

O futuro começou a ser delineado com a urna eletrônica. Com ela, saímos do limbo e da vergonhosa pecha de República de Bananas. Lamentavelmente, corremos o risco de, além do retorno ao bananismo, recuperarmos um sentimento de inferioridade que, pelo menos como país exportador de boas e seguras eleições, há muito não sentíamos. Novamente o complexo de vira-lata está bem próximo de nós. E não apenas como eufemismo. Inverossímil, mas verdadeiro, ele está sendo posto à mesa exatamente pelo presidente da República, figura que, em vez de rebaixar e desonrar a pátria que diz amar, deveria contribuir com seu crescimento e, com base na convicção de que o sistema eleitoral é confiável, dizer aos seguidores mais radicais que o país que dirige não vive mais de fraudes, de coronelismo ou de mapismo.

Seria fundamental também explicar que mapismo não é uma nova especialidade de quem estuda mapas, mas uma prática fraudulenta de antigas eleições, nas quais o número 17 (casualmente o de Bolsonaro hoje) poderia virar 170, 177 ou 117. Em síntese, deputado federal de sete mandatos – a maioria deles conquistado após o advento da urna eletrônica –, o líder nacional bem que poderia se colocar como a prova irrefutável da segurança da máquina e da desnecessidade do voto impresso. Presidente, proteja a democracia e não o mantra da mentira de perdedores. Diga a seus apoiadores que acoplar um equipamento para imprimir votos é sinônimo de potencializar a chance de novos problemas. Pior do que isso. É formalizar o estímulo à compra de sufrágios, na medida em que, garantindo a cópia do voto, o “comprador” terá facilitado o controle de seu “eleitorado”.

Mais uma vez lembro Caputo Bastos ao afirmar que a festa da democracia era “a farra da acrobacia numérica”, técnica que não permitia desperdiçar votos em branco. E não eram desperdiçados. Os coronéis os recebiam e, quando perguntado por algum de seus “eleitores” em quem havia votado, a resposta era carregada de sarcasmo e hipocrisia: “Não posso revelar, pois o voto é secreto”. Será que queremos voltar a esse estágio? A quem incomoda ter resultados seguros em uma, duas ou três horas após a apuração do último voto? Por que o presidente, ao lançar dúvidas sobre a lisura das urnas eletrônicas, não apresenta provas? Porque elas não existem. Ele ganhou todas as eleições que disputou. Então, na hipótese de fraudes, foram a seu favor. Simples assim. Muito mais do que recuperar o complexo de vira-lata, o voto impresso representará um dos maiores retrocessos que o Brasil experimentou desde seu descobrimento.

*Armando Cardoso é jornalista

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