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Carioca sem chão

Rio dos anos dourados vira uma vaga lembrança

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Tânia Rêgo

De passagem pela outrora Cidade Maravilhosa, me senti um peixe respirando por aparelho. São 458 anos de uma longa existência glamorosa e desastrosa há algumas décadas, mais precisamente desde os anos 80, após uma sequência de aventureiros transformados em governadores. Destes, pelo menos seis viraram hóspedes de presídios que ricamente mandaram construir ou ampliar. Usaram e não aprenderam. Tivemos outros menos ruins, mas também destruidores da imagem da antiga capital. Enfim, faz tempo que o Rio de Janeiro não é mais o mesmo. Ainda tem Copacabana, Ipanema, Leblon e o Maracanã. Todavia, tantos foram os descasos que, visitando bairros que me foram caros, fiquei com a impressão de que o carioca raiz perdeu a vontade de ser identificado como tal.

Abandonado, pichado por dentro e por fora, a Cidade de São Sebastião, berço de tantas estórias e histórias, hoje não passa de uma saudosa e vaga lembrança. De frente para o mar, nas ruas de chão do subúrbio, no pé do morro ou nas entradas das favelas (hoje eufemisticamente rebatizadas de comunidades), vivi um Rio de Janeiro que não existe mais. Cariocas da gema ou não, como esquecer Chacrinha, Edson Bolinha Cury, Chico Anísio, Silvio Santos, Jô Soares, Agildo Ribeiro, Costinha, Big Boy, Monsieur Limá, Carlos Imperial, Ademir do Le Bateau, Ricardo Amaral, Ronaldo Bôscoli, Hélio Jaguaribe, Millôr Fernandes, Miéle, Barão de Itararé, Stanislaw Ponte Preta, José de São Januário, Super XX, Carlos Zéfiro e Péricles de Andrade, o criador do Amigo da Onça.

Tínhamos a melhor música, o melhor futebol, carnaval de rua, de clubes e sambas de enredo com graça e musicalidade. E o Edifício Balança Mais Não Cai, na ex-famosa Praça 11? O prédio continua de pé, mas a praça sumiu, virou um fantasmagórico Terreirão do Samba. Também sumiram as marchinhas carnavalescas e viraram pó a Boate Le Bateau, a Rua Montenegro (Ipanema), o Hippopotamus, o Circo Voador, o Garota de Ipanema, o Canecão, o Noites Cariocas, a Ilha dos Pescadores, o Menino do Rio e os restaurantes Lamas e Fiorentina. Como suburbano de origem, só comecei a frequentar alguns desses locais depois de assumir os dotes jornalísticos, isto é, bem depois de ter nascido. Antes disso, todos lembravam o caviar: só conhecia de ouvir falar.

No Rio de Janeiro da memória, a juventude transviada se reunia no Pier de Ipanema ou nos cinemas Bruni, Roxy, Veneza, Palácio e Regência de Copacabana, Cascadura, Bangu, Campo Grande e Méier para, depois de um mergulho, um sanduíche Gordon ou um dog da Geneal, assistir o Canal 100, um cinejornal fundado em 1957 por Carlos Niemeyer. Rever gols do santista Pelé e dos rubro-negros Dida ou Doval era o máximo. A turma vibrava como se estivesse na geral do Maracanã. Às vezes, o broto ao lado sequer permitia que entendêssemos as mensagens subliminares de Nelson Pereira dos Santos, Nelson Rodrigues, Cacá Diegues e Glauber Rocha. Por isso, vi, mas, infelizmente, nada posso contar sobre Macunaíma, Pra Frente Brasil, Memórias do Cárcere, Último tango em Paris e Eles não usam black tie.

No entanto, sei tudo – e mais um pouco – de Blecaute, Wilson Simonal, Elis Regina, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Taiguara, Fábio, Renato Barros, Serguei, Jorge Ben (Jorge Benjor não é do meu tempo) e dos tijucanos Erasmo Carlos e Tim Maia. Roberto Carlos virou rei, mas sempre foi súdito de Sebastião Rodrigues Maia, com quem aprendeu os primeiros acordes no antigo e insuperável violão Giannini. Abençoado por São Jorge, São Judas Tadeu e São Cosme Damião e Dom Um, o Rio de Janeiro só não perdeu ainda a fama de cidade alegria e de todos os brasileiros. Uma pena, mas, passados 458 anos, lembro com muita saudade da Praia de Maria Angu (hoje Piscinão de Ramos), do Castelinho, da Feira da Providência, da New York City Discotheque, do Drive In da Lagoa e do Tivoli Park.

Apesar de, à época, jamais imaginar que um dia poderia acessar um desses bens, a maior tristeza é circular pelas ruas cariocas e não vislumbrar um “desfile” automotivo de Brasílias, Belinas, Passats, Pumas GT ou GTB, DKW-Vemags, Karmanguias, Miuras, Mobiletes, Garelis, Calois 10 ou MPs Lafer. E os All Star, Congas e Kichutes? Sonhos de uma geração, também sumiram nos embalos de uma noite qualquer. Como o Topo Gigio, o Armação Ilimitada e o irmão do Henfil, tiveram o mesmo fim os shows no Maracanãzinho, os teatros Scala, Arena e Tereza Rachel, os bolachões do Renato e Seus Blue Caps, as fitas K7, os filmes em VHS, os CDs e até os DVDs. Saudosismo à parte, o que sobrou do meu Rio de Janeiro dos anos dourados? Além do tráfico, da milícia, de muitas balas perdidas e da repugnante divisão social e política, muita coragem e força para chegar vivo aos domingos. Sou um carioca sem chão.

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