Curta nossa página


Rio Una

Saga de Capoeiras a Barreiros vira ex-doce sonho de consumo

Publicado

Autor/Imagem:
José Seabra - Foto Sueli Costa

Não fosse paulista – e não se tem notícia de que tenha andado pelos lados do agreste pernambucano – o poeta Vicente de Carvalho teria nominado bromélia ou orquídea a planta que ficou para a eternidade no poema A Flor e a Fonte. Delicadas como o bater das asas de um beija-flor, elas florescem todos os anos às margens do Rio Una, numa região que se imagina um agreste árido, mas que tem vida e cores primaveris.

Essas flores são verdadeiras heroínas da natureza na ‘Terra dos Altos Coqueiros’, também conhecida como ‘Nova Roma de Bravos Guerreiros’ ou simplesmente ‘Pernambuco imortal, imortal’. Aliás, ‘o nosso país’, como os pernambucanos definem carinhosamente seu Estado.

Mesmo gozando um longo período de férias, jornalista – e isso está no sangue – sempre arranja um pretexto para escrever algo. Como não sou avexado, dei tempo ao tempo. E passados vinte dias admirando o mar de Itapuama, tomei emprestada a frase de Luiz Gonzaga e fui viajar pelo ‘país’ que é Pernambuco.

A ideia de conhecer a nascente do Una, no quase povoado de Capoeiras, e acompanhar seu percurso até ‘invadir’ o Atlântico, onde ele ‘se despede de Barreiros e emboca pra dentro do mar’, como canta Jorge de Altinho, era um velho sonho de consumo.

A aventura ganhou contornos de realidade na noite anterior, alimentada no restaurante Rota da Costa, um ponto paradisíaco que tem como anfitriões Sérgio e as filhas Vera e Cibele – esta última, por curtos períodos, quando no Verão troca a selva de pedras que é São Paulo por um coqueiral que separa o restaurante das águas mornas de Itapuama.

‘Apois’ – um dialeto próprio, que pode ser, por exemplo, então – foi ali que tudo começou. Serviam-me um camarão com caldo (e não um caldinho de camarão) degustado com uma original cachaça da terra como tira-gosto, tendo a brisa do mar beijando-me as faces, quando Vavá Galdino sentou-se em seu banquinho e fez soar os primeiros acordes do violão. Deu vida nova a Djavan. […Do pé que brotou Maria, nem Margarida nasceu…]. Cantava como um canário de olho em uma canarinha no cio. E dispôs-se a atender pedidos, desde que parte do seu repertório.

Vavá fez Gonzagão viajar no Riacho do Navio e atravessar a ponte sobre o Rio São Francisco que transforma Petrolina e Juazeiro, juntas, numa metrópole sertaneja. Sertaneja de sertão, não essas que confundem fazer amor com trepada. Ressuscitou Patativa do Assaré, com Vozes da Seca, e apresentou aos ouvintes a Bela da Tarde, aquela garota de Boa Viagem que Alceu Valença fez ser cantada em diferentes idiomas.

Cantando, Vavá olhou-me, sorrindo. Gesticulou para que eu, ocupando uma mesa próxima ao palco improvisado, cantasse com ele. Meneei a cabeça, agradeci. Mas pedi a música que me consumia por dentro. “Essa não dá”, respondeu-me. “São muitas cidades e me perco pelo caminho”. Porém, prometeu-me, iria decorar para cantar oportunamente. Impôs uma condição. Que cantasse com ele.

Ontem, então, já era hoje, ou seja, passava da meia-noite. O microfone foi desligado e o violão silenciado sob protestos dos clientes. Alguém gritou ‘manda a saideira’, e Vavá fez o público viajar como elefante pisando em pitomba, antecipando um clima carnavalesco de quem sempre tem pela frente mais um dia feliz.

O dono da voz de canário que paquera as fêmeas no cio, foi para um lado. Paguei minha conta (incluído aí o cachê), atravessei a rua e fui ouvir em casa Rio Una. Vavá tem razão. Só mesmo Jorge de Altinho para não se perder percorrendo desde a nascente, no Planalto da Borborema, até desembocar sua água doce e cristalina no verde e suavemente salgado Atlântico.

Mal nasce em Capoeiras, o Una ‘sai correndo a galopar em direção ao mar’. A segunda cidade que ele banha é São Bento, de onde vaza como uma corrente para Cachoeirinha. Lá ele demora ‘um tiquinho’ e logo segue para Altinho. É quando ‘se alegra e se agita como quem vê moça bonita na barreira matutina’. Um rápido flerte e vai descendo para Agrestina, com suas águas batendo nas pedras como se fosse uma canção.

Irreverente, o rio continua a galopar em direção ao mar. Em Palmares, ‘ele mata a saudade, passa dentro da cidade valente como um leão’, mas deixa de ser arisco em Água Preta, onde se desvia como um primo desgarrado e pede ao Velho Chico sua bênção. Só então o Una ‘entristece, bota pra chorar, se despede de Barreiros e emboca pra dentro do mar’.

E ‘apois’… Vavá está certo. Decorar as oito cidades é como ser operário na ‘construção’ de Chico Buarque. Fiz meu percurso sem pressa. Realizei meu sonho de consumo como um leigo a inspirar-se no difícil mundo dos poetas. E vou aguardar neste ‘país’ dos pernambucanos o dia em que silenciarei feliz, ‘guardando as recordações das terras onde passei’.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência Estadão, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.