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Juiz fora dos autos

Sentença inovadora enaltece o cara da galera

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior* - Foto de Arquivo

Escolado por uma longa e proveitosa passagem pelos escalões superiores e inferiores do Poder Judiciário, vi e vivi uma evolução que poucos mortais do século passado imaginavam experimentar no poder. Resisti para afirmar que nada é imutável, nem mesmo as pessoas providas de sentimentos ainda muito primitivos. Por exemplo, já ouvi de amigos absolutamente ateus o chamamento por Deus no momento mais tenso do fim da vida. Morreram, mas passam bem depois do perdão divino. Tergiversações à parte, vamos direto ao assunto. Já no início do século 21, durante 17 anos, estive responsável pela Comunicação Social de três dos cinco tribunais superiores. Por meio dos jornais, revistas, sites, rádios e televisões, a tarefa era mostrar à sociedade que os ministros são seres humanos igualzinho a qualquer um de nós.

Sempre em nome da lei, erram e acertam diariamente. Em outras palavras, não existem anjos entre os cerca de 15 mil juízes em atividade no país. Tempos glamorosos, de muito aprendizado, mas de muito trabalho para convencer determinados ministros do STF, TSE e STJ da necessidade – na verdade obrigação – de prestar contas ao povo de seus afazeres como magistrados. Como? Quando necessário e possível, dando conhecimento de seus julgados ao contribuinte, sobretudo aquele com interesse na decisão. Respeitemos os sigilos e nada mais. Claro que havia exceção, mas boa parte dos meritíssimos à moda antiga adorava se livrar do compromisso de dar declarações públicas sobre seu trabalho. Para isso, usava um bordão tão antigo como o direito: juiz só fala nos autos.

Perdoem-me os que um dia pensaram desse modo, mas sempre avaliei o clichê como mito, uma interpretação míope do direito. Considerando que tanto ontem quanto hoje ou amanhã a sociedade tem o direito de ter conhecimento sobre os representantes do Poder Judiciário, as atribuições forenses têm de ser claras. Ou seja, juiz pode, e deve, falar fora dos autos. Obviamente, desde que não tenha pretensões artísticas ou queira usar os holofotes em benefício próprio. Um representante da justiça de Goiás resolveu inovar. E inovou com um tema que ainda é tabu em varias famílias brasileiras, notadamente as despudoradamente conservadoras.

Em uma sentença que deu e ainda dará muito o que falar, o magistrado goiano lamentou que se relacionar com prostitutas não é mais um fato de boa reputação. Publicada no Diário da Justiça de Goiás em 27 de setembro, o juiz Thiago Brandão Boghi lembrou que, no seu tempo, esse tipo de relacionamento era salutar, inclusive garantindo ao pervertido alcoviteiro enaltecimento e destaque entre os amigos mais pudendos. “Era o cara da galera”. Segundo sua excelência, lamentável como os tempos mudaram. “Agora virou ofensa! Tempos sombrios!”, escreveu o moço de toga. Tudo isso porque um homem registrou queixa contra uma mulher que o acusou de usar drogas e “estar com putas”.

O autor do processo acusa a ré de calúnia, injúria e difamação. A tal mulher teria feito fotos da orgia e enviado para a namorada do querelado. Afirmando que agiria do mesmo jeito se a situação fosse inversa – alguém enviar fotos da namorada do acusador com outro homem -, o juiz decidiu em favor da ré, assegurando que os fatos narrados não constituem crime. Não sei qual o contexto – a ação corre em segredo de Justiça -, mas, na mesma sentença, o magistrado salientou que o ex-deputado Jean Willys é queridinho da Rede Globo e que a legenda de esquerda PSOL é “queridinha do STF”.

Não interessa o que ele quis dizer. Importante é que sua excelência tirou um peso da consciência de 49,2% da população brasileira. Os 50,8% restantes querem escalpelar o juiz. Para o bem de todos, melhor os homens optarem pela velha e desavergonhada manipulação, já que, embora menos pudica, a atual nomenclatura (programa com meninas) está muito além do jardim dos senhores recatados. Quem sabe o progressista juiz não amplie o próprio habeas corpus àqueles que ainda fazem da fuleragem e da devassidão um bom meio de vida. Eu prefiro o recesso do lar.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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