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Marco Temporal

Supremo esconde ministros como um tatu na própria toca

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Autor/Imagem:
José Bessa Freire/Via Pátria Latina - Foto de Arquivo

“E o ideal que sempre nos acalentou, renascerá em outros corações”. (Charles Chaplin, Luzes da Ribalta. 1952).

Logo após a promulgação da Constituição de 1988, o secretário executivo do Núcleo de Direitos Indígenas, Márcio Santilli, circulou por Brasília com um grupo de índios de várias etnias, para quem explicou o que era o Poder Judiciário, a importância da lei escrita e como funcionava a legislação na sociedade nacional muito diferente dos sistemas jurídicos existentes nas sociedades indígenas. Na Praça dos Três Poderes, diante da estátua da Justiça, Santilli apontou para prédio do STF com suas colunas laterais levitando sobre o chão:

– Lá dentro desta Casa Grande estão as pessoas que conhecem as leis e decidem o que é legal, o que é justo.

– Então vamos entrar lá agorinha, conversar com elas para não deixarem roubar a nossa terra – disse um dos índios.

Santilli esclareceu que essa não era a forma de agir, o Judiciário tem suas regras, precisa haver um caso concreto e entrar com uma ação. Só assim é que aparecem juízas e juízes que estão lá dentro. A explicação foi tão clara que a imagem usada pelo índio demonstrou haver ele entendido muito bem:

– Ah, então quer dizer que o Judiciário é como o tatu? Fica escondido ali no buraco e só mostra o casco e as unhas se a gente tirar ele lá de dentro?

Essa história foi contada pelo advogado Carlos Frederico Marés, ex-presidente da Funai, no evento “Rede de Altos Estudos em Direitos Indígenas” organizado pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. O vice-presidente da entidade, Mauro Campbell Marques, ministro do STJ, abriu o ato com um discurso que começou desejando “djawydju” (bom dia) a todos em língua guarani e prosseguiu enunciando o art. 231 na mesma língua.

Protagonismo indígena
O tema de Marés foi “Protagonismo dos povos indígenas na defesa de seus direitos no Judiciário”. Ele explicou que no Brasil, em 1988, eram raríssimos os advogados que defendiam os índios, ignorados olimpicamente pelo mundo jurídico. Mas quando começou o processo constituinte, aqueles que haviam saído de suas aldeias para estudar na cidade já haviam criado entidades fora dos moldes da organização tradicional e assim costuraram alianças com o mundo acadêmico para defenderem seus direitos. Inicialmente, os caciques e as próprias comunidades ficaram com um pé atrás.

A alternativa que esses intelectuais indígenas encontraram foi a articulação com as grandes lideranças conhecidas até fora do Brasil, como Davi Yanomami e Raoni – disse Marés. Dessa forma, puderam enfrentar o debate profundo e denso da Constituinte. Até então não havia um só advogado indígena. A primeira decisão do movimento foi incentivar que estudassem Direito, o primeiro deles foi Paulo Pankararu, presente no debate da ENFAM. Muitos outros possuem hoje a carteirinha da OAB, quatro deles entraram na toca do tatu na última quinta-feira para argumentarem contra o marco temporal como amicus curiae.

– O amor que os indígenas têm pela Constituição de 1988 é originado pela consciência de que contribuíram decisivamente para sua elaboração. Por isso hoje sabem o que estão discutindo. Quando mais de 6.000 índios acampam em Brasília, estão lá manifestando sua esperança de que a toca do tatu faça cumprir a lei maior. O protagonismo agora é dos índios que souberam construir o diálogo entre a tradição e a sociedade nacional – concluiu Marés:

– Digo sempre aos meus amigos juízes que comecem a ouvir os advogados indígenas.

A tutela
A outra expositora foi a antropóloga e historiadora Manuela Carneiro da Cunha, com o tema “O indígena na consciência e na legislação nacionais e sua influência nas decisões do Judiciário: a superação do projeto de assimilação”. Ela participa do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça que prepara resolução sobre a nova forma da magistratura encarar os índios, estabelecendo um diálogo intercultural. Discorreu sobre o período colonial, quando o objetivo era explorar a força de trabalho indígena e o pós colonial, a partir do séc. XIX, quando a questão principal se tornou a cobiça da terra dos índios.

Manuela é sempre Manuela, fiel aliada, cujo saber está eternamente a serviço dos índios. Ela nos guiou num passeio pela história indígena e do indigenismo, com visão crítica sobre as instituições do Brasil colônia: os missionários e os colonos com suas contradições, a coroa portuguesa, os jesuítas, Pombal. Depois discutiu a Lei de Terras de 1850, que transformou a terra em mercadoria. Refletiu sobre o equívoco de se confundir aldeias – espaço da autonomia indígena com aldeamentos missionários, avaliou a catequese dos capuchinhos italianos, abordou o apogeu do positivismo, até chegar aos crimes cometidos pelo SPI em plena ditadura militar e à criação da FUNAI.

Sobre o marco temporal, Manuela criticou a confusão nada inocente entre integração e assimilação e a tutela do Estado, quando os magistrados não admitiam que indígenas pudessem entrar na toca do tatu com os próprios pés, nem muito menos criar suas organizações. Tinham que ser representados pela FUNAI, que muitas vezes foi conivente com a invasão de terras e não recorria à Justiça, o que torna ainda mais escandalosa a reivindicação do marco temporal pelos ruralistas. A “proteção” ambígua da tutela não foi exercitada como garantia, mas como sujeição, dependência, obediência, submissão.

Diversidade de línguas
Finalmente, Paulo Pankararu, na condição de debatedor, fez uma síntese das falas e formulou várias perguntas aos palestrantes, depois de breve histórico sobre o povo Pankararu, que teve a sua terra de volta, em 2018, por força de decisão da Justiça Federal. Por isso – ele disse – os Pankararu estão acompanhando de perto o debate no STF sobre o marco temporal, “que fere frontalmente os direitos originários sobre as terras que ocupamos tradicionalmente. A Constituição de 1988 inaugurou um novo período para reconhecer os nossos direitos, que inicia com o reconhecimento da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas”.

Ih, empolgado com as falas do Marés, da Manuela e do Paulo Pankaruru, acabei esquecendo o outro palestrante: esse locutor que vos fala, que desenvolveu o tema “Línguas indígenas e os direitos linguísticos dos índios no Brasil” e deu exemplos da proibição, em pleno séc. XXI, do uso dessas línguas, em cinco instâncias de poder: tribunal, assembleia legislativa, escola, emissoras de rádio e nas relações de trabalho. Tais atitudes são responsáveis pelo glotocídio – processo de extinção de mais de 1.000 línguas nos últimos séculos. Uma pergunta foi feita:

– O que um juiz, um jornalista, um professor, um deputado, um fazendeiro que tratam questões envolvendo índios aprenderam sobre as culturas e as línguas indígenas em sua formação profissional? A ausência de reflexão e a cegueira colonial, reveladas pela incompetência cognitiva do invasor, acabaram nos deixando pesada herança na forma de pensar, que nos impede de admitir a existência de um sistema normativo não escrito próprio das sociedades indígenas, baseado no costume, em outras formas de registro não alfabético e enraizado no direito consuetudinário.

A trajetória do ex-ministro do STF, Ayres Brito, relator do processo que reconheceu a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ilustra essa questão. Ele confessou que ao viajar a Roraima, a fim de preparar seu relatório, pensava como o general Custer, comandante do 7º Regimento da Cavalaria Americana, exterminador de índios. Depois de conversar com índios e antropólogos, retornou com a mentalidade de Touro Sentado, cacique Sioux. O Brasil que está nascendo é esse, que tem abertura para escutar, para estabelecer diálogo entre os saberes indígenas e a ciência. O Brasil moribundo é aquele que esbraveja e lamenta o fato de “a cavalaria brasileira não ter sido tão eficiente como a norte americana para acabar com os índios”, frase de uma burrice histórica.

Renascimento
O autêntico processo civilizatório consiste em criar as condições de convivência e não na destruição do “outro”. Uma demonstração do Brasil que nasce foi a enunciação feita pelo ministro Mauro Campbell Marques do artigo 231 da Constituição em tradução feita pelo cineasta e professor da língua guarani-nhandewa, Alberto Álvares. O fato deu visibilidade a essa língua, cujas variedades são faladas em mais de 100 municípios brasileiros, no Paraguai, Argentina, Bolívia e até por um pequeno número de usuários no Uruguai, além de ter sido reconhecida pelo IPHAN como referência para a cultura brasileira e decretada língua cooficial do MERCOSUL.

Quem deve ter ficado feliz com o gesto do ministro foi Maneca Marques e Vivi Campbell Marques, antigos líderes comunitários do Conjunto Castelo Branco, no Parque 10, em Manaus, depois homenageados com seus nomes em duas ruas, ele da principal e ela da antiga rua do Comércio. O casal, ali onde estiver, vibrou com o gesto simbólico do filho, dono de uma pronúncia impecável em guarani, que dá de dez a zero no inglês do técnico Joel Santana. Só falta agora os tatus – peba, canastra, bola – saírem da toca para derrubarem o marco temporal.

O público jovem que acompanhou as palestras, formado por estudantes de direito, ex-alunos, professores, juízes, advogados, antropólogos, indígenas e indigenistas, me fez lembrar Charles Chaplin em Luzes da Ribalta:

– O ideal que sempre nos acalentou, renascerá em outros corações.

É, parece que está mesmo renascendo.

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