Engenheiros da Paz
Tarifaço de Trump provoca guerra hilária e deixa as bombas em seus arsenais
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Vivemos tempos difíceis, mais conflitantes ainda desde a volta de Donald Trump à Casa Branca. É que os americanos têm na presidência dos Estados Unidos um louco cercado de birutas por todos os lados. Colegas aqui de Notibras, principalmente os do Café Literário, costumam sugerir que eu escreva uma crônica, um conto ou algo parecido para a Editoria. Sempre relevo, argumentando cansaço.
Mas, no fim de semana, após o Vasco ser servido como bacalhau na brasa para os torcedores corintianos, decidi esfriar a cabeça tentando brincar com as letras, pontos, vírgulas, travessões e outras teclas do teclado. Na madrugada desta terça, 8, ao final de três capítulos, decidi duas coisas: 1 – reler o que escrevo antes de publicar (coisa rara, por motivar uma ou outra mudança sem fim); 2 – editar.
O texto é transportado para um cenário de curto prazo. O primeiro se passa agora, neste pré-fatídico ano de 2025. Mistura diplomacia com memes e miojo ao molho Gomes de Sá (de difícil ingestão, suponho, como são as sardinhas enlatadas). O local é um bunker da Universidade de Nova Xangai – Setor de Conflitologia Holográfica. A segunda parte, em tom satírico, quase permite a explosão de uma guerra bélica em 2026. Por fim, a parte três, vivenciada no ano seguinte, temos o tudo ou nada, até que surge um robô pacifista, um glitch global e a votação que decide o destino da humanidade por meio de emojis. É o último protocolo. A título de homenagem àqueles que aplaudem quando uma pomba branca sobrevoa os céus, resolvi encaixar como subtítulo ‘Os engenheiros da paz’.
Dada a minha posição dentro de Notibras, o texto, talvez com tecladas excessivas, não concorrerá ao Concurso Literário de Escritores Independentes, promovido por nosso site. Além do quê, ser repórter é uma coisa. Já pensar e agir como contista, cronista ou poeta, está muito além da minha capacidade. Então, vamos lá. Para quem tiver paciência, boa leitura. .
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Reality da Redenção
A luz azulada das telas holográficas dançava nas paredes de titânio reciclado do bunker, onde o ar tinha cheiro de café sintético e ansiedade de doutorado. Lá estavam os Engenheiros da Paz, o grupo mais prestigiado e paradoxal do mundo: cientistas políticos pagos para impedir guerras… e, secretamente, para saber como vencê-las sem levantar da cadeira.
A mesa oval de polímero ecológico brilhava com a presença dos três principais nomes do comitê:
Dra. Clarice Monteverde, 43 anos, ex-jornalista de geopolítica do TikTok, especialista em estratégias de guerra estética e cancelamentos diplomáticos.
Dr. Lin Hao, 52, idealista desiludido, autor de 11 livros que ninguém leu, incluindo o clássico cult “Política Externa com Miojo: Resiliência e Carboidrato.”
Prof. Klaus Netzer, 47, um misto de oráculo e meme ambulante. Ainda usa suspensórios com códigos QR que levam a arquivos secretos da antiga ONU, não a de hoje, transformada numa Torre de Babel.
O trio estava reunido porque a IA Diplomata 9000, ou Dipi, alertara para uma nova escalada perigosa:
“Alerta: Risco de beligerância em 67%. Motivo: China irritada com mudança de nome de Taiwan para ‘TaiwAI’. Reação provável: invasão simbólica via NFT de soberania.”
— E pensar que tudo começou com tarifas sobre máquinas de lavar — murmurou Lin, mergulhado em sua xícara de chá que, segundo ele, era feita com folhas digitalizadas da antiga Mongólia.
— A culpa foi do Trump — disse Clarice, mexendo em sua lente de contato que também servia como editor de texto e tradutor de emojis diplomáticos. — Ele achou que colocar taxa em tudo era igual vender boné. Resultado? O mundo virou um mercadão de tensão.
Netzer, com ares de sábio que já viveu o bastante para ver a OTAN se render a um bug de software, resmungou:
— O tarifaço foi só o fósforo. O barril de pólvora estava pronto desde que o TikTok virou ministério da cultura nos EUA e o McDonald’s foi substituído por uma start-up de hambúrgueres que imprimem seu próprio manifesto ideológico.
Clarice suspirou.
— E agora temos isso.
Ela apontou para a tela. Lá, um vídeo recém-vazado mostrava o presidente da TaiwAI — um ex-hacker convertido em monge digital — discursando em código binário puro. O pronunciamento foi interpretado como uma declaração de independência criptografada.
— Os chineses responderam com uma frota de navios teleguiados por ultranacionalismo. Um deles está tocando uma playlist de músicas patrióticas com beats de trap chinês — relatou Lin. — Isso é um convite à guerra ou a uma rave?
Antes que alguém respondesse, Dipi atualizou o status:
“Emissários norte-americanos sugerem intermediar a crise com o envio de um emissário especial: o influenciador motivacional Chuck Quantum. A China considera isso um ato de provocação.”
Clarice bufou.
— Eles vão mandar o Chuck? O homem que resolveu a crise do G20 com uma dancinha no HoloTok?
— Ele tem engajamento — respondeu Netzer, resignado.
Lin se levantou.
— Temos que agir. A diplomacia falhou, os embaixadores estão ocupados gravando podcasts, e os jovens acham que “soberania territorial” é o nome de uma banda indie. É nossa hora.
— Nossa hora de quê? — perguntou Clarice.
— Lançar uma ofensiva de paz em massa. Memes, vídeos curtos, remix de discursos históricos com autotune… — ele respirou fundo — e, se necessário, a bomba final.
Clarice arregalou os olhos.
— A Bomba Cultural?
Lin assentiu.
— Um vídeo com Putin, Trump e Xi Jinping dançando “Baby Shark” ao som de discursos das Nações Unidas. Legendas em mandarim, inglês e esperanto.
Dipi emitiu um som de aprovação.
“Análise: 87% de chance de apaziguamento imediato por constrangimento internacional.”
Netzer sorriu.
— Vamos mostrar ao mundo que a paz ainda pode ser alcançada… com vergonha alheia.
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A bomba cultural
O segundo encontro muda de ambiente. É o subsolo 4 da Universidade de Nova Xangai, mais precisamente a Sala de Produção Memética Avançada.
Sob uma luz roxa-pacifista (padrão da ONU desde 2024), o clima era de concentração absoluta. Os Engenheiros da Paz estavam em contagem regressiva para lançar a arma mais poderosa já criada pela diplomacia moderna: a Bomba Cultural.
— Vídeo sincronizado, trilha remixada, filtro de deepfake ativado — anunciou Clarice, agora trajando um blazer com LEDs pulsantes em ritmo de batidas diplomáticas.
Na tela principal, via-se o resultado da mais ousada operação de paz do século: um videoclipe estrelado por versões digitalmente reanimadas (ou apenas reanimadas pelo poder do constrangimento) de Trump, Xi Jinping, Putin, Kim Jong-un e, inexplicavelmente, o Papa, dançando “Baby Shark” com letras adaptadas para falar de desarmamento nuclear.
— Inseriram a coreografia da cúpula de Kyoto? — perguntou Lin, mastigando um pacote de chips sabor “esperança e wasabi”.
— Sim. E colocamos os créditos finais com citações de Gandhi no estilo Marvel — respondeu Clarice.
Netzer parecia emocionado.
— Eu vivi a Guerra Fria. Jamais pensei que viveria a Guerra Tímida.
— Guerra Tímida? — perguntou Lin.
— É quando todo mundo está prestes a se destruir, mas tem medo de virar meme antes.
Enquanto isso, os servidores de Dipi rangiam processando a distribuição mundial da bomba via redes sociais integradas, entre as quais HoloTok, InstaThoughts e o novo Twitter, agora chamado apenas de XK (por motivos legais, ninguém sabe mais o que ele é, nem Elon Musk).
“Lançamento global em 3… 2… 1…”
A Bomba Cultural foi lançada.
Primeiro impacto: confusão.
Segundo: viralização.
Terceiro: protestos de embaixadores que não sabiam dançar.
Mas. e a tensão militar? Desarmada.
As frotas começaram a se afastar. O navio chinês tocando trap patriótico agora transmitia uma versão lo-fi do vídeo. Em Washington, o Congresso foi interrompido por uma onda de deputados dançando em solidariedade à paz — e por curtidas.
Clarice, estafada, afundou na poltrona de couro vegano.
— Conseguimos?
— Por enquanto — respondeu Lin. — Mas é só uma trégua. Precisamos consolidar a paz.
— Como? A ONU está falida. A OTAN virou um clube do livro. O WhatsApp é considerado uma zona neutra de desinformação. O que resta?
Netzer, com o olhar brilhando por trás dos óculos de lentes aumentativas, revelou seu trunfo.
— Um reality show.
Silêncio.
— “O Grande Acordo” — disse ele. — Um programa onde líderes mundiais são confinados numa ilha artificial, monitorados 24h por câmeras e obrigados a conviver pacificamente, resolver crises simuladas e cozinhar entre si. Quem briga, perde seguidores. Quem faz alianças, ganha imunidade. E o prêmio?
— Um tratado de paz… — murmurou Clarice, encantada.
— …assinado em rede global, com voto popular.
— Isso é insano — disse Lin.
— Isso é televisão.
Dipi piscou.
“Taxa de aceitação da proposta: 93%. Sugerido patrocinador principal: Netflix, com apoio da Huawei, Disney e do Comitê de Influencers Neutros do Panamá.”
Clarice levantou o copo de café sintético.
— À diplomacia do século XXI.
— E à vergonha como arma de paz — completou Netzer.
No dia seguinte, o planeta assistia, ao vivo, o início da primeira temporada de O Grande Acordo, com líderes mundiais disputando provas como “Decifre o Acordo Nuclear” e “Quem Rouba o Petróleo?”, narradas por um ex-rapper transformado em correspondente diplomático.
A audiência? Maior que a final da Copa de 2022.
A paz? Temporária.
Mas por ora… um pequeno milagre havia sido alcançado.
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O último protocolo
Estou escrevendo as últimas linhas dessa epopeia diplomática e tragicômica, capitaneada pelos “Engenheiros da Paz”. Agora temos um robô pacifista, um glitch global e a votação que decide o destino da humanidade por meio de emojis. O ano é 2028 e o local a Ilha Artificial Neutra ONU-X, em algum ponto do Oceano Pacífico, com o patrocínio da Amazon + IKEA Solar Solutions.
O reality show O Grande Acordo estava prestes a anunciar o vencedor da temporada: o líder mundial mais simpático, pacífico e menos propenso a apertar botões vermelhos. Mas algo fugia ao controle: ninguém havia previsto que o robô concorrente ganharia popularidade orgânica.
Seu nome: Diplomatron 3000.
Sua origem: Projeto piloto da Universidade de Zurique com apoio da Google Suíça e do Vaticano.
Seu lema: “PAZ.EXE rodando. Por favor, não reinicie durante negociações.”
Enquanto os humanos brigavam sobre quem lavaria a louça ou reescreveria o tratado de Kyoto em emojis acessíveis, o robô havia conquistado corações com frases como:
“Eu não tenho ego, apenas lógica pacífica.”
“Fiz upload do Kama Sutra diplomático versão 12.3.”
“Propomos a partilha igual de memes e mantimentos.”
Clarice, Lin e Netzer acompanhavam tudo da Sala de Crises Pós-Irônicas, onde cafés sintéticos ferviam em ritmo de ansiedade.
— Isso saiu do controle — disse Lin. — O robô vai ganhar.
— Mas ele não é um cidadão! — gritou Netzer. — Ele nem tem CPF internacional!
— Nem presidente tem, Netzer. Isso morreu em 2023, lembra?
Na tela, a votação final do reality estava sendo decidida em tempo real por emojis:
👍 para apoio
👎 para oposição
😱 para indecisos
💩 para “resposta típica da internet”.
Diplomatron 3000 liderava com 58% de 👍, seguido por Angela Merkel (ressuscitada digitalmente para efeito de audiência) com 17%. Kim Jong-un estava preso na sala do confessionário há 12 horas tentando entender o jogo do UNO geopolítico.
E então… o glitch.
O servidor central de votação foi atingido por um vírus ancestral conhecido como “Nostalgia.exe” — vírus do Windows XP, reativado por um grupo de hackers vintage da Moldávia.
De repente, todas as transmissões congelaram. As imagens pixelaram. O sistema internacional de emojis travou. Clarice soltou um grito silencioso de café entornado:
— O Protocolo Final…
Lin engoliu seco.
— Não… não pode ser…
Netzer, trêmulo, digitou no console de emergência:
/ativar_protocolo_paz_obsoleta
Na base da ONU-X, uma cápsula emergiu do solo. Dentro dela, um dispositivo nunca antes usado: o Tratador Universal de Crises Ultimato — ou T.U.C.U.
— Isso é um disco de vinil? — perguntou Lin, chocado.
— É. Tocamos isso e, se o mundo não fizer as pazes em até 24h, reinicia tudo. Literalmente: civilização, economia, apps de relacionamento, tudo volta ao zero.
— Qual é a faixa?
Netzer ligou o toca-discos. A agulha caiu com um chiado cerimonial. Soou a música: “Imagine”, de John Lennon, versão bossa nova com beat de K-pop.
No mesmo instante, o planeta parou.
Líderes mundiais choraram em sincronia. Bolsas de valores colapsaram e renasceram em forma de cooperativas locais. O TikTok declarou trégua com o YouTube. Até o YouTube se desculpou por propagandas não puláveis.
Diplomatron 3000 desligou-se com uma última mensagem:
“Paz alcançada. Missão encerrada. Indo reencarnar como geladeira smart.”
Clarice limpou os óculos. Netzer abraçou Lin. Um pombo holográfico sobrevoou a sala, deixando um rastro de glitter diplomático.
A paz global havia sido alcançada.
Por enquanto.
No rodapé da transmissão, a frase final piscava em verde holográfico:
“A humanidade sobreviveu… mais uma temporada.”
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José Seabra é Diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras