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Quem sabe faz a hora

TSE corre o risco de engolir voto impresso

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Autor/Imagem:
Armando Cardoso - Especial para Notibras

Parte da letra de “Pra não dizer que eu não falei das flores”, o verso “quem sabe faz a hora não espera acontecer” não tem qualquer conteúdo semântico. Autor da letra e música, Geraldo Vandré disse exatamente o que ele queria dizer. No literal, significa que não devemos empurrar com a barriga um problema que é nosso e cuja solução exige resposta rápida. No português mais romântico, o trecho pode ser entendido como não podemos ficar parados, vendo as coisas acontecerem. De modo ainda mais racional, se queremos mudar ou evitar que algo nos ocorra, temos de tomar iniciativas. A melhor solução é a proatividade, isto é, fazer algo e não ficar esperando cair dos céus, nascer em árvores ou brotar do universo. Escritos em 1968, os versos de Vandré transmitiam esperança e incentivavam os brasileiros a se mobilizarem contra a ditadura. Censurada, a letra tornou-se um hino de resistência dos movimentos civil e estudantil da época.

Passados 53 anos do estouro da música, Vandré, que, felizmente permanece entre nós, poderia inspirar a cúpula, a base, o entorno e a periferia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a se insurgir de modo mais objetivo contra a proposta bolsonarista de recuperar o voto impresso, reconhecidamente um retrocesso eleitoral. Não se trata de crítica gratuita, mas de constatação de quem acompanha e defende a lisura do sistema eletrônico de votação. Se querem realmente evitar o trator pilotado pela deputada Bia Kicis (PSL-DFD), com apoio dos presidentes da República e da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), é preciso sair dos gabinetes, se armarem e partirem para a guerra. Entrincheirados não se ganha nada. No máximo, um resfriado em forma de vídeo.

Além da faca nos dentes, o outro lado acredita no sucesso de uma proposta de emenda constitucional (PEC), porque, para eles, a luta é de vida ou morte. Na verdade, de vitória ou golpe. Para o povo que ainda não conhece os bastidores da Justiça Eleitoral, urna eletrônica é igual banheiro: se não tiver papel não funciona. O TSE tem fartos mecanismos e argumentos para provar o contrário. Mas, repito, não é com videozinhos mambembes para circuito interno que conseguirão convencer parlamentares e o povão. Recentemente, o PSDB, de Aécio Neves, escreveu o lead de uma minuta de defesa para o tribunal. A direção do partido reiterou publicamente a confiança na urna eletrônica e no processo eleitoral. Fez isso gratuitamente, após uma hilária manifestação do chefe do Executivo, para quem Aécio teria ganho de Dilma Roussef.

Não lembro de ter visto citações teessianas sobre o texto tucano. Foi para o arquivo morto. Semana passada, o site Poder 360 comparou as peças publicitárias sobre segurança da urna a “guerreiros da pré-história combatendo exércitos digitais”. Sem entrar no mérito, é bem por aí. Pode ter até ter passado da conta, mas o “elogio” representa a preocupação de todos que temem o retrocesso. Obviamente que a iniciativa merece aplausos. Entretanto, o didatismo dos vídeos remete a uma sala de aula do maternal 2. Com um pouco de comedimento, lembra um cursinho de admissão. Se querem ser didáticos, que sejam mostrando o bê a bá da máquina de votar, incluindo as sistemáticas reuniões técnicas com Ministério Público, OAB e partidos políticos, sempre acompanhados por experientes e exigentes hackers. Não podem esquecer de contar a historinha dos boletins de urna, da votação paralela e da fracassada experiência com o voto impresso na eleição presidencial de 2002.

Bolsonaro, Bia Kicis e a “família” bolsonarista não estão brincando quando afirmam que o país enfrentará sérios problemas se não houver a chamada auditagem do voto em 2022. É uma ladainha, uma procissão sem andor. Podem até estar exagerando, mas desde menino aprendi que ganha a briga quem grita mais alto. Por enquanto, o TSE está só no fiu fiu. O presidente do tribunal, ministro Luiz Roberto Barroso, é bem-intencionado. Pelo menos faz o que alguns sequer tentaram. Todavia, é necessário mostrar a cara, visitar e convencer quem vota, informar e alertar quem desconhece os objetivos do mantra da “família”. Que seus assessores e técnicos não esqueçam que, do outro lado do front, há soldados e oficiais prontos para uma guerra profissional. Nessa analogia, o amadorismo será vencido com um traque, dois estalinhos e algumas porções de pólvora vencida. Custe o que custar, a ordem no Planalto é impedir que a iminente falta de votos gere uma anunciada e fragorosa derrota.

Felizmente, os partidos não parecem afinados com o Planalto. Já perceberam que a bravata bolsonarista fará água como fez a de Donald Trump. Tomara. O que não pode ocorrer é, novamente, o tribunal se utilizar do argumento da independência dos poderes para não agir. Embora verossímil, ele não deve ser de mão única. Se o chefe do Executivo pode se intrometer publicamente em questões supostamente de exclusividade do Parlamento, parece excessiva a preocupação dos representantes do TSE em pelo menos não tentar evitar uma proposta reconhecidamente ruim para os cofres do país e para o povo chamado eleitor. Como quem sabe faz a hora, já passou o “timing” para reavivar a memória de antigos parlamentares e mostrar aos mais novos que, em 2002, o TSE, se antecipando à lei, incluiu, como teste, uma impressora nas urnas de 150 municípios, entre eles todo o Distrito Federal e o estado de Sergipe, totalizando 7.128.233 eleitores (6,18% do eleitorado da época).

Então presidente do tribunal, o ministro aposentado Nelson Jobim, não esperou a casa cair e mostrou o quão complicado e caro para nossa realidade era (e é) a inclusão de uma nova geringonça à máquina de votar. A experiência foi uma catástrofe. Além do desconhecimento de parte dos votantes e de mesários sobre o novo mecanismo, houve falhas de natureza mecânica, eleitores saindo da cabine sem confirmar o voto, demora excessiva na votação, necessidade de procedimentos de transporte, guarda e segurança física das urnas de lonas com os votos impressos e ocorrências na conexão do módulo impressor, deixando o sistema vulnerável a tentativas de fraudes. Ex-deputado e um dos maiores entusiastas da urna eletrônica, Jobim já foi “convocado” algumas vezes para “visitas” técnicas à toca dos leões. Com robustas anotações, cutucou as “onças” com números e raciocínios técnicos inquietantes e ainda hoje lembrados. A verve e a coragem do ministro não amarelam nunca. Não seria o caso de experimentá-las? Podem ser mais proveitosas do que vídeos produzidos para prateleiras.

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