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Complexo de vira-lata

Urna eletrônica vira nova inimiga de Bolsonaro

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Autor/Imagem:
Armando Cardoso - Especial para Notibras

Em algum momento de nossas vidas já tivemos a clara sensação de que nosso trabalho é inferior ao do colega do lado e que nossa casa é menos colorida do que a do vizinho. É uma questão de valores, às vezes de capacidade de se imaginar grande ou até, pela ausência de discurso lógico, achar melhor se apequenar para não ter como explicar sua incapacidade de vencer. É comum a qualquer pessoa admirar o que outra fez ou adquiriu, de modo a ter uma referência de sucesso. Contudo, o que acontece quando se torna automático sentirmos vergonha de nós mesmos ao nos compararmos com alguém? É um comportamento autodepreciativo que me obriga a relembrar o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues e sua célebre definição sobre a falta de autoestima dos brasileiros.

É o simbólico complexo de vira-lata. Estamos longe de 1950 e da derrota, em pleno Maracanã, do selecionado brasileiro de futebol para o Uruguai. Essa teria sido a origem da expressão que ganhou o mundo, perdura no tempo e ainda hoje mantém os brasileiros como seres menores em vários lugares do planeta. Insisto nesses preâmbulos mais longos apenas para ratificar minha preocupação com uma das raras unanimidades desse país. Mais uma vez refiro-me à urna eletrônica, invenção genuinamente nacional que, após os 7 a 1 para a Alemanha (explicitando a decadência do futebol), a ausência do carnaval, e nossa bisonha e amadora bajulação ao fracassado Donald Trump, é o grande símbolo brasileiro no exterior, ao lado do Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo e responsável direto pela imunização de expressiva parcela da população.

Assim como o Butantan, patinho feio do governo Bolsonaro apenas pela vinculação a um adversário político, o sistema eletrônico faz tempo é o inimigo da vez do ocupante do Palácio do Planalto. Na verdade, desde que tomou assento, em janeiro de 2019, o capitão destila veneno contra a Justiça Eleitoral, mais especificamente exigindo a volta de um dinossauro apelidado voto impresso. Seria mais uma das tragédias protagonizadas pelo presidente não fosse cômica a tentativa – isolada e sem argumentos lógicos – de exumar um cadáver sepultado há pelo menos uma década e meia. Cômico porque até hoje não foi apresentada uma única prova capaz de confirmar as falsas denúncias sobre a fórmula brasileira de receber, apurar e divulgar votos.

Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições gerais de 2002, Nelson Jobim, se antecipando à lei que determinava o voto impresso para o pleito municipal de 2004, optou pela experiência. Tudo deu certo, mesmo a impressão do voto. Ficaram comprovados os inconvenientes do mecanismo, que nada agregou em termos de transparência ao processo. Com um gesto de mestre e abarrotado de provas, Jobim mostrou às viúvas das cédulas e do mapismo que as urnas eletrônicas sem voto impresso eram definitivas. À época, o ministro reuniu partidos, candidatos e técnicos, afirmando que, caso houvesse necessidade de algum tipo de fiscalização, de um antidoping do processo, que fosse feito de forma eletrônica, e não impressa. Não houve, não há e não haverá. Talvez para aqueles com necessidade de explicar derrotas.

Técnica e eletronicamente não é crível a identificação do eleitor com a liberação da urna para voto. É absolutamente equivocada a pretensão de desconectar a máquina do processo de verificação do eleitor. Caso isso ocorra, a urna terá de ficar todo o período totalmente aberta, abrindo possibilidade para fraudes. Na prática, será possível saber quem votou em quem, o que significa desfazer tudo que vem sendo feito há anos para desvincular o eleitor do seu voto. Ainda que se garanta o anonimato do votante, é possível identificá-lo associando as informações de horário e assinatura digital ao momento em que o eleitor inseriu as informações no painel eletrônico. Enfim, o retorno da impressão do voto retomaria uma experiência absolutamente frustrada. Como disse Jobim à época, essa nova investida do presidente da República representa um regressismo.

Mais recentemente o advogado Carlos Caputo Bastos, ex-ministro do TSE, reconheceu a relevância estatística de eventuais defeitos da urna. Entretanto, foi taxativo ao afirmar que acoplar outro equipamento para imprimir votos potencializará a possibilidade de problema, sem nenhum ganho de qualidade e confiabilidade. “Como dizem os pilotos de caça, uma turbina, um problema; duas turbinas, dois problemas”, acrescentou o jurista. O que pretende o eleitor Jair Bolsonaro ao levantar suspeitas sobre a urna eletrônica, produto 100% nacional? Será que ele quer voltar ao sistema de cédulas? Permitir que se vote por correio, como em muitos países? Um dos mentores da maquininha de votar, o físico nuclear Paulo César Bhering Camarão viajou o mundo atestando a confiabilidade da urna.

Por essa razão, o técnico pode ser “convidado” a desfazer o hiato político na cabeça do presidente, considerando que ele é eleito por esse mesmo sistema há cerca de 30 anos. Lembro-me bem quando Camarão (provisoriamente (ou não) vinculado à forma bolsonarista de ser) disse certa vez ao ministro Ilmar Galvão que, para votação, o Brasil precisava de algo bem simples e que não fosse maior do que uma máquina de extrato bancário (os mais novos talvez não entendam a referência). Portanto, ainda que, aparentemente preocupado com a pandemia que nunca o intimidou, Bolsonaro e apoiadores poderiam procurá-lo para ter certeza de que estão errados em suas investidas sem provas. Repito que seu passado, os livros e centenas de entrevistas defendendo a segurança da urna eletrônica desencorajarão Paulo Camarão a negar o óbvio, consequentemente contribuir para exacerbação de nosso complexo de vira-lata.

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