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Aposentadoria compulsória

Velho solitário entrega vida ao forno do fogão

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção de Irene Araújo

Felinto! Sim, esse era o nome de mais um dos milhares de velhos que arrastam suas carcaças carcomidas pelo tempo, sempre implacável, pelas ruas e avenidas de Copacabana.
Havia muito que Felinto se despedira da vida de servidor público, função que exerceu por longos 47 anos até que, finalmente, recebeu a tal da compulsória. Foi para casa. O dinheiro deu uma minguada, é verdade, mas também deixou de ser escravo da gravata.

Ficou num impasse: abandonar as viagens frequentes à terra natal, Cataguases, interior de Minas Gerais, ou comprar os remédios da pressão, da diabete, as vitaminas… Abandonou Cataguases. Para que iria continuar indo lá, se praticamente todos os amigos já haviam adquirido um pedacinho de terra no cemitério? E os parentes que ainda tinha naquela cidade nem se importavam mais com o velho, que, no final da década de 1940, resolveu tentar a sorte na então capital da República.

E se os parentes da não tão longínqua Cataguases não se importavam com o velho Felinto, os da Cidade Maravilhosa também não eram diferentes. A esposa o deixou para ir se deitar em uma das covas do Cemitério do Caju há quase uma década. Os filhos… Ah, esses constituíram família há tanto tempo que, por isso mesmo, preferiam vivenciar apenas seus próprios problemas. Afinal, o pai já estava fazendo, há tempos, hora extra no plano dos vivos.

Felinto acordava todos os dias praticamente à mesma hora. Levantava da cama solitária, caminhava pelo apartamento solitário até que resolvia, de vez em quando, abrir a porta da rua e pisar no corredor solitário. Tomava o elevador solitário, passava pela portaria solitária e chegava à rua solitária. Dobrava a esquina solitária, entrava na padaria solitária, onde enfrentava a fila solitária. Fazia o caminho solitário de volta, uma volta também solitária. Comia o pão, único, solitário.

Às vezes, bebia. Às vezes, cerveja, às vezes, vinho, às vezes, caipirinha, mas preferia uma purinha mesmo. Cachaça solitária! Tão solitária que doía no peito, batia no estômago e, por pouco, atrevida, não voltava. Teimosa, doía na alma!

Certo dia, chegou ao seu solitário apartamento, exausto de tanto álcool circulando pelas veias e artérias. Abriu a geladeira. Fria! Vazia! Tentou o fogão, girou o botão e abriu o forno. Desgostoso da vida, cansado da solidão, resolver dar cabo de tudo aquilo. Dar cabo até mesmo do velho corpo, que continuava perambulando, sonâmbulo, por Copacabana. Enfiou a cabeça dentro do forno!

Na mesma semana a notícia se espalhou.

– Vocês souberam o que aconteceu com o velho Felinto? – Ernesto, um rapazola que passara a frequentar a praça Serzedelo Corrêa há pouco mais de um ano, perguntou a um grupo que jogava cartas. Ernesto logo ficou conhecido pela alcunha de Boca de Balde, por causa de sua peculiar incapacidade de guardar segredo.

– Não – alguns responderam, enquanto outros nem tiraram os olhos das cartas, tamanho o interesse pelo jogo.

– O que houve com o Felinto? – Anibal, que estava próximo, tentando vencer Nilson em uma truncada partida de xadrez, fez a pergunta antes de todos, que apontaram as orelhas atentas em direção à boca mordaz de Ernesto.

– O Felismino morreu? – Clarindo, que trocava os nomes das pessoas, conhecia o velho há anos, mas não chegava a ser seu amigo, arriscou.

Antes de começar a contar, Ernesto deu uma gargalhada, tentou conter a própria euforia e, finalmente, desandou a tagarelar.

– Olha, vocês nem vão acreditar no que aconteceu com o velho Felinto. Vocês sabem que ele mora sozinho, né? Pois bem, no domingo ele voltou pra casa mais bêbado que um gambá. Chegou tropeçando, o porteiro até teve que colocá-lo no elevador, pois o velho tava que tava.

– E como você sabe disso? – Nilson desconfiou da história do rapazola.

– O porteiro do prédio do velho Felinto é meu chegado. Foi ele que me passou a história. Mas como eu estava falando, o Felinto teve de ser carregado até o elevador pelo porteiro. Então, quando chegou ao apartamento, o Felinto abriu o gás do fogão, meteu a cabeça dentro do forno e…

– O Felinto morreu? – Nilson, que tinha certa simpatia pelo velho, apesar de não serem amigos, tomou um susto.

– Ô, seu Nilson, o senhor vai me deixar contar a história ou não?

– Pô, Nilson, deixa o Boca de Balde falar! – Felipe, um velho que adorava as reportagens sangrentas do jornal O Povo, reclamou.

]- Boca de Balde é a puta que te pariu! – Ernesto ficou indignado com o apelido.

– Calma, Ernesto! E fale logo o que aconteceu com o Felinto! – Anibal tentou acalmar os ânimos do pirralho.

– Tá bom, tá bom! Mas Boca de Balde é sacanagem! Pô, não sou baú pra ficar guardando segredo, mas Boca de Balde já é demais.

– Fala logo, moleque! – Felipe se exaspera.

Ernesto, com cara de poucos amigos, encarou o velho, mas logo percebeu que todos estavam esperando pelo desfecho da história. E ele gostava de ser o centro das atenções.

– Pois bem, o velho ligou o gás do fogão e meteu a cabeça no forno. Aí, na manhã seguinte, esse porteiro, que é meu amigo, tocou o interfone do apartamento do Felinto, pois o cara da antena coletiva passaria naquele dia pra sintonizar os canais da televisão. Então, ele se lembrou de que o interfone do velho Felinto estava com defeito. Aí, ele foi até o apartamento do Felinto e encontrou a porta entreaberta. Ele entrou e encontrou o velho estirado no chão da cozinha. Só que teve um lance! – Ernesto fez uma pausa de suspense.

– Que lance? – Nilson perguntou.

– Fala logo, Ernesto! – Anibal, que estava quase tão aflito quanto Nilson, intimou.

E, após mais uma gargalhada, Ernesto continuou.

– Olha, o velho Felinto acordou no outro dia cheio de ressaca e com o maior torcicolo. O velho burro tentou se matar, mas se esqueceu de pagar a conta e, então, o gás havia sido cortado – Ernesto finalmente solta toda a história e volta a cair na gargalhada.

Nilson e Anibal ficaram aliviados pelo desfecho do ocorrido, se bem que um tanto desapontados pela forma grosseira como Ernesto se referiu ao velho Felinto. “Velho burro!” ainda ecoou nos ouvidos dos dois amigos por um bom tempo.

E o que antes deveria ter sido motivo de tristeza, acabou se transformando em chacota de muitos em Copacabana. Felinto não chegou a notar o sarcasmo das pessoas. Talvez até gostaria de saber que havia se tornado alvo de piadas. Ao menos, passaria a ser notado.

Em menos de 15 dias, vendeu o apartamento. Vendeu com todos os móveis, não queria lembrança alguma. E, com a bolada no bolso, também não quis mais saber de Copacabana, não quis mais saber da Cidade Maravilhosa. Também não procurou abrigo nas Minas Gerais.

Viajou, viajou, viajou… Até onde o dinheiro permitiu!

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