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Bem além dos muros

Vence na vida quem tenta, mesmo que na rabeira da lista

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Vou contar uma história do jeito que chegou aos meus ouvidos. Diz assim:

Mamãe contava tantas histórias, que deixava todos boquiabertos. Nesse tempo, eu não sabia nem pensar, mas depois as ideias começaram a brotar que nem minhoca em terra úmida. Coisas de criança, cuja imaginação não se intimida com os muros ao redor. A visão acaba que não tem fim.

Lembro bem desse tempo quando percebi que coisas distintas, quando juntas, podem dar outras completamente diferentes. E com M dá EM, 1 com 3 dá 13, mas pode dar 31 dependendo do jeito de olhar. Gostava do 13, que para mim só dava sorte, ainda mais porque sonhava em completar essa idade para ser igual à Aurelina, minha irmã mais velha.

Demorou um bocado, mas meus 13 anos chegaram. Todavia, Aurelina, talvez com pressa de não sei o quê, já estava com seus 20. Esperta como ela só, tomou a frente no armazém da família. Papai, que a princípio não queria filha mulher se metendo nos negócios, deu o braço a torcer após perceber que o dinheiro começou a entrar sem cerimônia.

O Solano, nosso irmão do meio, bobo que sempre foi, quis entrar pro Exército. Coitado, desgostoso da vida por não ter guerra para lutar, terminou os dias lavando latrina no quartel. Um dia tomou um escorregão e tacou a testa na quina do buraco de se agachar. Não morreu por conta da pancada, mas por afogamento naquele monte de dejetos. Não foi por falta de conselho, pois mamãe sempre disse para ele deixar aquela bobice de farda e buscar emprego de verdade.

Quando terminei os estudos, pensei em me casar. Não havia pretendentes do meu agrado, mas pensei que fosse a minha sina me tornar esposa de algum homem bom. Não precisava ser tão bom assim, mesmo porque, até onde sabia naquele tempo, todos nasceram com certa maldade no coração.

Contei meus planos para Aurelina, que me passou aquele carão. Que coisa mais besta arrumar marido! Vai fazer faculdade, isso sim! Faculdade? Nem sabia o que queria ser, mas minha irmã me ajudou até nisso. Ela me mostrou aquele mundaréu de cursos que eu poderia fazer. Gostei de Serviço Social. Fiz o vestibular naquele início de 2006.

Não fiquei entre os primeiros colocados. Na verdade, fui a penúltima na lista de 30. Confesso que me senti envergonhada, mas logo a Aurelina me deu um cutucão. Deixa de bobice, Lígia! O importante é que você passou. A sua vaga vale tanto como qualquer outra. Como sempre, minha irmã estava com razão.

Ainda me lembro do primeiro dia de aula. O frio na barriga não me deixava esquecer de que eu era a primeira pessoa da minha família a fazer um curso superior. Dessa forma, por mais estranho que fosse aquele mundo novo, procurei me esforçar ao máximo. Creio que fui bem-sucedida, pois consegui me destacar entre os alunos e, assim que me formei, tomei posse em um órgão público.

O concurso ocorrera há quase um ano, mas Aurelina, sempre ela, me disse para fazer a inscrição. Fiz a tal prova e, quando saiu o resultado, fiquei desapontada porque minha classificação ficou fora das vagas. Mas, por sorte, chamaram mais gente, inclusive meu nome, no mesmo dia que peguei o certificado de conclusão do curso universitário.

O tempo voou mais rápido do que eu esperava. Hoje estou com 36 anos, casada há três com o Júlio, um cara muito divertido e companheiro. Nossa filha, que nascerá daqui a dois meses, vai ter o mesmo nome da madrinha, que continua tomando conta dos negócios da família lá na nossa pequena cidade do agreste nordestino.

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