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O barão

Vexames de Eduvaldo, que se imaginava realeza sendo pobre de dar pena

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Eduvaldo, o Edu, gostava de ler romances. Nos últimos tempos, vinha encarando o monumental ‘Em busca do tempo perdido’, de Marcel Proust.

Estava fascinado pela magnífica escrita do autor e também por detalhes que lhe permitiam visualizar a sociedade na transição do século XIX para o século XX – a Belle Époque.

Um deles era a escrita de cartas. Putz, como as pessoas escreviam!

Diariamente, ou quase, os carteiros de Paris deviam ter uma trabalheira dos diabos. Isso lhe deu uma ideia: mandou (por WhatsApp) a seguinte mensagem a todos os seus amigos: “Galera, não seria legal se a gente não utilizasse e-mail nem zap ou outras redes sociais, e se comunicasse por meio de cartas, como faziam nossos avós? Aguardo respostas”.

Estas não demoraram, chamando-o de ultrapassado, saudosista, coisas assim. Uma das mais veementes dizia: “Porra, maluco, tá me zoando? Meus avós, que Deus os tenha, nunca escreveram uma carta na vida! Até porque Vô mal sabia desenhar o nome, e Vó era analfabeta de carteirinha”.

Edu teve de recuar, momentaneamente vencido. Mas não desistiu de sua campanha por uma certa elegância na comunicação interpessoal. “Depois recebo um Proust rápido e escrevo ‘Em busca da elegância perdida’”, dizia sempre a si mesmo, com um risinho.

Outro aspecto que o fascinava era o ritual das visitas. As senhoras elegantes dirigiam-se à casa umas das outras, mas não entravam, limitavam-se a entregar a um criado o seu cartão. Pelas descrições do romancista, Edu soube que alguns desses cartões de visita eram adornados por coroas principescas ou ducais (os que eram deixados por princesas ou duquesas, lógico). Isso lhe parecia o suprassumo da elegância. Então decidiu-se:

– Vou mandar imprimir cartões de visita com uma imagem sugestiva. E vou utilizar essa imagem nos meus e-mails, no WhatsApp, em todas as minhas redes sociais!

Por um momento, pensou em utilizar o brasão da família Silva, que surgira no reino de Leão, que inclui um leão de púrpura em campo de prata (o Google traz esse tipo de informação, em geral inútil). Afinal, era um Silva. Por sorte, logo caiu em si: Eduvaldo da Silva era um nome pra lá de plebeu, não combinaria com um brasão fake. Não descartou, porém, o uso do título de barão.

“A palavra barão é de origem germânica e significava originalmente homem livre, guerreiro”, concluiu, depois de guglar novamente. “O mesmo que o varão usado em Portugal. Os Silva leoneses eram guerreiros, cavaleiros com brasão de armas, portanto barões. É, barão Eduvaldo da Silva não soa nada mal…”

Que imagem usaria, afinal, nos seus cartões e redes sociais? Assumiria o brasão de armas leonês ou seria mais discreto? A solução para suas dúvidas veio do livro 2, ‘À sombra das raparigas em flor’, do romance de Proust. Nele, o autor conta que o papel timbrado da carta que Gilberte, seu primeiro amor, lhe envia, “tinha um sinete prateado representando um cavaleiro com o seu capacete, a cujos pés se retorcia a divisa Per viam rectam”.

Ele leu a descrição, a releu, e lembrou que Swann, pai de Gilberte, era plebeu. Um plebeu rico, que frequentava príncipes e princesas, mas plebeu. Quase igual a ele, que era um plebeu pobre, pobre, pobre, de marré marré marré.

A imagem, decidiu-se, ia ser a de um cavaleiro de capacete; achou prudente acrescentar um cavalo, Proust não informara se o quadrúpede estava presente no papel timbrado dos Swann. Quanto à frase em latim, não ousou plagiar a citação do romance, optou pela orgulhosa máxima da cidade de São Paulo, Non ducor duco (não sou conduzido, conduzo). Se lhe perguntassem por que ele, catarinense, usava a frase paulistana, tinha a resposta na ponta da língua:

-Também não sou conduzido, conduzo.

E aí deu bosta.

Primeiro, com a imagem. Fez pose para a foto, de capacete na cabeça, com uma expressão que imaginava heroica, mas que lhe deu a aparência de um peão rude, de vaquejada. O cavalo também não lembrava um equino medieval, parecia saído, pra lá de bêbado, do show sertanejo de uma Festa de Peão e Boiadeiro. Seja como for, mandou imprimir junto à imagem duas versões escritas, uma apenas com o seu nome e outra como barão Eduvaldo da Silva, esta última destinada a recentes conhecidos.

Ele nunca soube se errou a escrita, se foi culpa de sua péssima caligrafia ou, mais provável, se o engano foi da gráfica, mas o timbre, a ser utilizado em seus cartões de visita, e-mails e postagens em todas as suas redes sociais, trazia impressas as palavras Non ducor, ducu. Com u, não o. E o pobre imbecil só percebeu depois de ter enviado dezenas de mensagens por todas as redes e distribuído centenas de cartões.

A tigrada fez a festa, passando a chamá-lo de “barão ducu” ou, os mais chegados, de “Edu ducu”. Já seus desafetos fizeram ainda pior, modificando ligeiramente a pronúncia do ducu, fazendo o “du” soar um pouquinho como “dao”.

Desesperado, mandou fazer nova impressão com a frase correta e exigiu ser chamado de Eduvaldo, para evitar a rima fácil ou, pelo menos, distanciá-la do Edu, mas era tarde demais. Virou alvo de zombarias generalizadas e sofreu adoidado com elas, a ponto de quase chorar de gratidão quando era chamado simplesmente de barão pelos que não conheciam os detalhes do vexame.

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