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Desapego

Casas são lugares de passagem que habitamos com afeto

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Gustavo Calazans

Há alguns anos que essa frase ressoa dentro de mim como um mantra. A casa onde vivo não é minha. Há uma escritura documental que diz lá que ela é de minha propriedade, mas de verdade, ela não é minha. A sociedade a reconhece como meu território, mas lá no fundo tenho noção de que ela não me pertence. Não sei dizer quanto tempo mais tenho nessa vida, mas sei dizer com quase total certeza que a construção onde habito ficará muito mais tempo fincada nessa terra do que eu. Essa que já foi de tantos outros e ainda será de muitos mais. Como poderia eu reclamar para mim a posse de algo que tem vida própria e cuja vida já esteve, e ainda estará, atrelada a inúmeras outras vidas?

Onde hoje fica um prédio, já houve uma casa. E onde essa casa se estabeleceu, talvez estivesse antes uma pequena chácara. E ainda antes dessa pequena chácara, um sítio maior, uma fazenda, uma capitania hereditária, uma tribo indígena, uma mata cheia de animais… São tantas as camadas da existência sobrepostas no que hoje chamamos de cidade – esse aglomerado de construções que a lógica capitalista fez virar uma terra de proprietários – que acreditar que a camada atual na qual eu vivo me dá direito de posse sobre as coisas seria muita ingenuidade. Melhor seria dizer que a casa me habita. Eu e minha vida somos muito pouco diante da trajetória do planeta e do universo.

Sei que esse conceito pode soar uma besteira para os mais materialistas, um papo espiritualista quase budista calcado na impermanência da experiência encarnada. E sim, é um pouco disso também. Mas essa perspectiva pode ser muito transformadora, mesmo no ceticismo. Imagine que a casa onde você vive já abrigou outras pessoas, outras famílias. Essas mesmas paredes, esse chão e esse teto já acolheram outras vidas que foram vividas de jeitos muitos diversos do seu. Esse mesmo espaço físico já foi chamado de lar por essas pessoas e, ainda assim, ele hoje pode ser considerado seu lar. Embora a estrutura física seja a mesma, algo diferencia radicalmente a ocupação que se faz dela. É essa diferenciação que qualifica algo como meu, seu, nosso. Tudo bem, pode ser que as paredes não sejam exatamente as mesmas, hoje temos mais banheiros do que nossos colegas ‘coproprietários’ dos anos 1950, por exemplo. A planta mudou, mas a casa é a mesma.

Recentemente uma amiga arquiteta me escreveu para parabenizar pelo blog e me contou uma história ótima – inclusive pensando que ela poderia em algum momento alimentar esse espaço. Chegou essa hora. Maristela me contou que quando a casa onde vive foi publicada nas páginas de uma revista, pouco tempo depois recebeu o telefonema de um senhor de Manaus. Ele havia morado na casa dela muitos anos antes. A casa tinha passado por uma profunda reforma, mas o corrimão da escada tinha permanecido – e era tão especial que o antigo morador logo o reconheceu, e não hesitou em procurá-la para contar da feliz coincidência. Eles compartilham mais do que um corrimão, mais até do que o afeto pela casa, da felicidade de terem vivido ali momentos significativos.

Esse é um contato raro. Poucas vezes o destino nos saúda com tamanha generosidade, colocando próximos esses parceiros de ‘propriedade’. E isso é rico, por que nos mostra que podemos ter afeto por coisas que serão objeto do afeto de outros, assim como cada um de nós já amou pessoas que hoje são amadas por outros. Essa noção da efemeridade da nossa passagem pelas coisas do mundo pode nos trazer uma nova perspectiva sobre como podemos nos apropriar dessas mesmas coisas. Poder usufruir do que conquistamos sem apego é um desafio, eu sei. Desafio bom. Daí a ideia de torná-lo um mantra a ser repetido incessantemente, cotidianamente.

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